Além da injúria racial: MP pede investigação de racismo em caso Suéllen
“Cara de favelada” e “pele escura com cara de marginal” foram alguns dos ataques racistas direcionados à prefeita eleita de Bauru Suéllen Rosim (Patriota); Conselho da Comunidade Negra enviou representação para enquadrar o crime como racismo, que em sua tipificação distinta da injúria racial, atinge todas as pessoas negras
Publicado em 20 de dezembro de 2020
Por Ana Carolina Moraes e Bibiana Garrido
O Ministério Público de São Paulo aceitou representação judicial do Conselho da Comunidade Negra de Bauru para investigação de racismo nos crimes contra Suéllen Rosim (Patriota). A tipificação de racismo é diferente da injúria racial, já que o racismo fere a coletividade e integralidade dos indivíduos de uma raça, enquanto a injúria racial seria ofensa ou ataque a uma pessoa.
Em manifestação do promotor Paulo Sérgio Foganholi, o MP solicitou inquérito policial “visando apurar eventual prática do crime de racismo” à juíza Érica Marcelina Cruz da 1a Vara Criminal do Foro de Bauru.
Na investigação da Polícia Civil as denúncias de Suéllen diante das ofensas foram tipificadas como injúria racial. Agora, os autos da representação enviada pelo Conselho da Comunidade Negra à Justiça serão juntados ao processo para apurar também o crime de racismo.
“A injúria racial pode ser denunciada somente pela prefeita, enquanto o crime de racismo qualquer um pode denunciar. O Conselho da Comunidade Negra entrou com essa representação pois são ofensas que atingem toda a comunidade”. Quem explica é Otávio Barduzzi, advogado do conselho municipal.
Os crimes de racismo estão tipificados na Lei Federal Nº 7.716, de 1989, que objetiva punir os “crimes resultantes de discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional”. Segundo a Constituição Federal, o crime de racismo é inafiançável e imprescritível.
A maior parte dos casos são registrados como injúria racial, prevista no parágrafo 3º do Artigo 140 do Código Penal Brasileiro, que se refere à ofensa individual por conta da cor, etnia, raça ou religião. De acordo com o Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2020, os registros deste delito tiveram um aumento de 23,4% em comparação com 2019.
“O inquérito ainda não está terminado. Haverão três processos que podem ou não ser reunidos em um só a depender das investigações”, completa Barduzzi.
Os três processos seriam correspondentes, então, à injúria racial, ao racismo e à ameaça de morte recebida pela prefeita eleita. As investigações podem convergir caso seja apontada a mesma autoria para todos os crimes.
Relembre o caso
Mesmo antes de ser eleita em Bauru, Suéllen foi alvo de uma série de ataques racistas nas redes sociais. Às vésperas do segundo turno, imagens de um grupo de Whatsapp com mensagens racistas viralizaram nas redes. “Cara de favelada”, “gente de pele escura com cara de marginal” foram algumas das ofensas direcionadas à jornalista e cantora gospel.
No domingo do pleito (29) Suéllen informou à imprensa local que havia tomado as medidas judiciais cabíveis. No dia seguinte (30), o Setor de Investigações Gerais da Central de Polícia Judiciária de Bauru abriu apuração.
Suéllen também recebeu por e-mail ameaça de morte com inúmeros xingamentos racistas. A mensagem criminosa foi encaminhada ao partido da prefeita eleita e à imprensa bauruense, sendo o Jornal Dois um dos veículos que recebeu o documento.
Mencionando compra de armas no Morro do Engenho do Rio de Janeiro, o e-mail deixou um nome completo e número de telefone com DDD 14. Nome e número foram borrados para preservar o sigilo da investigação.
“Nas mensagens racistas [das redes sociais] há três pessoas denunciadas com perfis diferentes, então, pode haver mais de uma pessoa responsável. Já o e-mail com a ameaça de morte se trata de um processo que depende de representação do ofendido”, detalha Barduzzi, advogado do Conselho da Comunidade Negra.
Na terça-feira da mesma semana em que recebeu as ofensas, Suéllen prestou depoimento sobre as ocorrências na Polícia Civil de Bauru.
Pela solicitação do Conselho da Comunidade Negra, o MP irá apurar a identidade de Dani Batazini, nome do perfil que enviou mensagens racistas pelo WhatsApp, e de Renato Strada, que comentou em uma notícia sobre a prefeita no Facebook: “Lacradora, vai no Carrefour que passa rapidinho”. João Alberto Silveira Freitas foi um homem negro assassinado em supermercado da rede no último feriado da Consciência Negra.
“Ele não quis insultar”
“O indiciado assumiu que escreveu as mensagens, porém ele não quis injuriar, insultar, ou desonrar, mas sim fomentar a discussão sobre o estereotipo do negro na sociedade”, diz o advogado do homem que é investigado pela autoria das mensagens de cunho racista nas mídias sociais. Jhimmy Escareli avalia que a ação de seu cliente “acabou por suscitar a desonra da prefeita ao invés de colocar o que ele realmente queria. Quero deixar claro que esse não é o pensamento deste advogado”.
A identidade do homem está protegida até que a investigação seja concluída, para não colocar em risco sua integridade física, nem a de seus amigos e familiares. “O sigilo é imposto para proteger o bem maior à vida. É perfeitamente normal nestes casos em que há comoção pública”, comenta Escareli.
Barduzzi atenta para a proteção mesmo em caso de condenação. “Se condenado em trânsito em julgado, onde não caiba mais recurso, sua identidade poderá ser revelada, uma vez que, provavelmente, ficará sob custódia do Estado”.
Segundo a defesa, a polícia chegou até a pessoa investigada por meio do número IMEI do dispositivo que foi usado para enviar as mensagens nas mídias sociais. O IMEI é um código único que consta em aparelhos celulares, como uma impressão digital, e serve para identificação.
Antes da denúncia ser formalizada à Justiça, a investigação segue com a realização de perícias que vão compor o inquérito. É possível, ainda, que outras providências sejam tomadas durante a apuração.
Mulheres na política
Os ataques sofridos por Suéllen Rosim não são incidentes isolados. Desde o final das eleições, discursos de ódio contra a população negra, LBTQIA+ e mulheres eleitas têm formado redes de preconceito e ignorância.
Em Curitiba (PR), a vereadora Carol Dartora (PT) recebeu um e-mail igual ao recebido por Suéllen. Dartora é a primeira parlamentar negra da história da capital paranaense e a quarta mais votada nas eleições de 15 de novembro. Em Belo Horizonte, Duda Salabert (PDT) foi a vereadora mais votada e a primeira parlamentar trans eleita na cidade: recebeu ofensas e ameaças de morte desde que venceu e pleito. Em Joinville (SC), a vereadora Ana Lúcia Martins (PT) também registrou ocorrência após receber ataques racistas e ameaças de morte nas redes sociais.
Vale lembrar Marielle Franco (PSOL), vereadora do Rio de Janeiro (RJ) assassinada em 14 de março de 2017, sem responsabilização pelo homicídio desde então.
“A sociedade não tem estruturas de acolhimento eficazes para as mulheres negras vítimas de violência política mesmo depois do que aconteceu com minha irmã. A maioria das mulheres não se sentem confortáveis para denunciar. E isso acontece justamente porque a maioria das mulheres que denunciam não vêem resultados nas denúncias”, afirmou Anielle Franco, vereadora do PSOL e irmã de Marielle em entrevista à Agência Pública.
O anonimato nas redes sociais tem favorecido a reprodução da violência na internet, que reverbera na realidade em uma onda de medo e insegurança. Do mesmo modo que as redes podem ser espaços de resistência construídos a partir do compartilhamento da indignação, uma faceta perversa desta ferramenta é a organização que reproduz as opressões raciais, de gênero e de classe dentro e fora das redes. O desafio está na ausência de políticas para o enfrentamento e punição dessas práticas.
Barduzzi lembra que “o Estado tem o poder e dever de proteger os menos favorecidos, e isso envolve as etnias e culturas que historicamente estiveram num papel de subalternidade, inclusive, para desconstruir as desigualdades históricas”.
“O direito penal deve ser exemplar para evitar novas manifestações desse tipo”, acredita o advogado, “e quando qualquer pessoa é ameaçada, o Estado deve agir rapidamente no sentido de proteger e evitar o dano. No caso de mulheres e negros, que historicamente tiveram seus direitos alijados, o Estado deve agir com mais rigor”.
Racismo em Bauru
Episódios racistas têm ganhado visibilidade em Bauru nos últimos anos. Em 2015, pichações racistas direcionadas ao professor Juarez Xavier foram encontradas na porta de um banheiro masculino no bloco em que ele trabalha na Unesp, a Universidade Estadual Paulista.
Em 2017, uma suástica foi desenhada sobre um cartaz da Angela Davis colocado em um banheiro da mesma universidade, durante uma ação do coletivo negro Kimpa.
No ano passado, o professor Juarez foi vítima de um ataque após reagir a ofensas racistas em Bauru, no dia da Consciência Negra, 20 de novembro. Os casos citados não representam a totalidade de ocorrências deste tipo registrados na cidade, sendo ocorrências que tiveram repercussão nos últimos cinco anos.
O racismo é uma forma de opressão que utiliza a raça, a etnia ou a cultura como forma de dominação entre povos, justificando privilégios e/ou violências com base na ideia de superioridade de uma raça sobre outra.