Adeus, meu camarada
Antônio Pedroso Júnior, o Chinelo, montou partidos, debates e controvérsias; aos 67 anos, seu imenso coração parou de repente na fria madrugada de 28 de junho
Publicado em 2 de julho de 2021
Por Gilberto Maringoni
É O SEGUINTE, ANTONIO PEDROSO JÚNIOR, 67 anos, foi-se embora na madrugada fria deste 28 de junho, em Bauru. Sem apelação ou aviso, quando seu imenso coração parou de repente. Infarto. Uma merda, uma merda, uma merda! Era um múltiplo, de voz poderosa, que volta e meia atropelava palavras, pronunciando os indefectíveis “brusa” e “bicicreta”, combinados com fina agudeza política e intelectual. Leitor e escritor voraz, dizia: “Meus amigos de bar falam ‘brusa’ e eu falo também”. E arrematava, gargalhando, “Qual o ‘pobrema’”?
Proprietário de um senso de humor inexpugnável, com o saudável costume de rir de si mesmo, era literalmente comunista desde criancinha. “Uma das lembranças mais remotas que guardo é a de acompanhar meu pai num comício da campanha do Lott, quando eu tinha de cinco para seis anos de idade”. O velho, apelidado pela polícia de Pedroso, o perigoso, era um valente líder comunista e ferroviário, capaz de se deitar nos trilhos para deter uma locomotiva durante uma greve.
Bauru, na primeira metade do século XX, era a fronteira da exploração do Oeste paulista, propagada como “o maior entroncamento rodoferroviário da América Latina”. Ali se cruzavam as estradas de Ferro Noroeste do Brasil, Sorocabana e a Companhia Paulista. Conectávamos orgulhosamente Santos à Bolívia.
OS MELHORES PROFISSIONAIS da engenharia nacional e alguns franceses se mudaram para a cidade, entre 1900-30, seguidos por levas de operários negros e caipiras responsáveis pela abertura da mata e assentamento de trilhos, e por imigrantes portugueses, espanhóis e italianos, que cuidavam das oficinas e pilotavam as composições férreas. Todos eram submetidos a um regime de trabalho semiescravocrata, com indecentes preconceitos de classe e raça. Desenhou-se a partir dali uma cruel etapa da ocupação do território por latifúndios, através da matança impiedosa de indígenas. Somando tudo, um Vesúvio de tensões sociais sempre pronto a entrar em erupção.
É neste quadro que a cidade vê surgir, desde o final dos anos 1910, pequenos grupos comunistas, que ganham consistência após 1945. Essa é a escola de Pedroso, o perigoso, que mais tarde teria no filho um discípulo fiel.
O QUE MOLDOU A PERSONALIDADE do garoto e da irmã foi ver o pai preso no início de abril de 1964, e ser sumariamente demitido da ferrovia. A mãe, dona Alzira, se virou do avesso em serviços culinários e domésticos tentando fugir da fome. Juntou caraminguás e vários empréstimos para montar um bar. Era uma portinha ao lado da casa periférica, que foi tocado por ela e pelo marido, quando os gorilas o devolveram às ruas. O nome do boteco? “Carcará, como o da música, o que pega mata e come”, repetia o filho a vida inteira, em homenagem ao primeiro sucesso de Maria Betânia, um ano após o golpe.
Conheci Pedroso e seu jeito largo e sem cerimônias em 1976, candidato a vereador, numa sublegenda do MDB. O cabeça de chapa era outro perigoso agente vermelho, Milton Dota. Trata-se de um advogado encorpado, ex-líder estudantil egresso de 68, várias vezes vereador, e que segue se pegando com fascistas na rua até hoje, do alto de seus 81 anos.
Pedrosinho, como os mais velhos o chamam, não se elegeu. Mas puxou dos pais o inconformismo e a capacidade de juntar gente e botar todos em movimento.
PEDROSO, O PERIGOSO, MORREU EM 1978, aos 59 anos, em plena ditadura. Nunca foi anistiado ou reconduzido ao emprego. Nem ele e nem milhares de batalhadores anônimos perseguidos por alcaguetes, policiais e milicos de quinta categoria. A partir dali, o filho abraçou a causa de sua vida, a reparação aos perseguidos pelo arbítrio.
Montou o primeiro Comitê Brasileiro pela Anistia (CBA) fora das capitais, quando o vento político começou a virar em favor das causas populares. Eram tempos em que mobilizações de massa pipocavam pelo país.
Nosso herói – tenho de chamá-lo assim – decidiu, com a ajuda de outros, fazer um levantamento dos presos, cassados e assassinados na região. Redescobre num casebre um velho amigo de seu pai, Alberto de Souza, ex-policial, participante da Revolução Paulista de 1924 e militante da Coluna Prestes e do levante de 1935. Encontra a família de Darcy Rodrigues, lugar-tenente de Carlos Lamarca e exilado em Cuba. Chama, entre muitos, Pebá Batista, companheiro de Marighella que ciceroneou Che Guevara pela cidade em 1966 (sim, é verdade!), Arcôncio Pereira da Silva, veterano das lutas contra o Estado Novo, contata José Duarte, lendário líder sindical e dirigente nacional do PCB e do PCdoB, e muitos mais, quase todos enfrentando dramática pobreza. E resolve escrever “Subsídios para a história da repressão em Bauru”, livro que deu voz e rosto a dezenas de combatentes esquecidos.
PEDROSO, O JÚNIOR, FORMOU-SE ADVOGADO, depois de atuar no movimento estudantil, no início dos anos 1980. Mostrou-se um disciplinado militante comunista, montou duas livrarias, uma delas com o sugestivo nome de Palmares, escreveu mais cinco livros sobre a ditadura e as perseguições aos de baixo, passou a defender ex-presos políticos nos tribunais de São Paulo e Brasília e a atuar na comissão de Anistia. Tornou-se uma espécie de memória viva do movimento operário no interior paulista. Nunca foi um acadêmico, mas era fonte de inúmeras teses, biografias e livros sobre nossa história recente.
Há vinte anos casou-se com Ana Célia e mudou-se para Sorocaba. Pedroso tinha uma gota renitente, que se acentuava com inevitáveis rondas aos botecos de onde quer que estivesse. Passou a ter problemas nos pés, o que impedia o uso de sapatos. Fizesse frio ou calor, lá vinha ele arrastando um par de sandálias pelas ruas. Em sua última tentativa de se eleger vereador, em 2000, inventou o apelido e o símbolo pelo qual se tornou popular: “Chinelo neles!” Quando nasceu o filho, Pedro Antônio, hoje com 18 anos, logo apelidou o moleque de Chinelinho.
NOSSO CAMARADA MONTOU partidos, debates, controvérsias e homenagens a antigos militantes, que sempre foram sucesso de público. Mas nunca alguém – este que vos fala incluso – organizou uma homenagem a ele. Talvez por faltar outro Pedroso para fazer a tropa trabalhar e montar uma sessão pública na cidade em que nasceu e morreu.
Vamos fazer isso, quando essa pandemia acabar, com o insanável “pobrema” de homenagear um tipo inquieto, provocador e ótimo de conversa sem sua presença para nos fazer rir.
Porra, Antonio Pedroso Junior , chorei pra caralho hoje. Que merda, cara, que merda! Adeus meu insubstituível amigo e camarada, adeus.