“A gente tá no olho do furacão”, diz diretor de Divisão Vigilância Epidemiológica sobre a pandemia em Bauru
Com recorde em agosto, aumento no número de casos pode levar a cidade a um “retrocesso total”
Publicado em 3 de setembro de 2020
Por Camila Araujo e Rodrigo Molina
O mês de agosto foi o mais letal na cidade de Bauru desde o início da contaminação pelo novo coronavírus: foram 67 óbitos registrados pela covid-19, do total de 140 mortes causadas pela doença – vale lembrar que o primeiro registro ocorreu no dia 4 de abril. Isso significa que quase metade (47,9%) das mortes pela covid-19 no município ocorreu no último mês.
Agosto também bateu o recorde de casos confirmados de coronavírus entre os bauruenses. Das 7608 pessoas testadas positivas, desde o início da pandemia, 3201 delas foram registradas durante o mês, o que representa 44,1% de todos os casos.
Tatiana Calmon, assistente de administração e moradora do Parque São João, foi uma das pessoas que testaram positivo para o novo coronavírus durante o mês. Ela contraiu o vírus de seu irmão, de 63 anos, que fazia um tratamento contra câncer no Hospital Estadual de Bauru (HEB).
Sem ser testado para covid-19, ele recebeu alta do hospital e foi liberado para casa.
Esse não é o primeiro caso de paciente receber alta médica do hospital sem ser testado para covid-19: o Jornal Dois publicou uma reportagem sobre um caso de contaminação na aldeia Kopenoti, em Avaí, de uma mulher indígena que recebeu alta do hospital depois de três semanas internada, e que não foi testada antes de voltar para casa.
O irmão da assistente faleceu no dia 21 de agosto. “Me fizeram enterrar sem poder me despedir”, lamenta Tatiana. Embora o teste tenha resultado positivo um dia antes do falecimento, ela conta que no atestado de óbito consta câncer e desnutrição, mas “nada do covid”.
Tatiana permaneceu assintomática, mas seu esposo, Roque Ferreira, ex-vereador e pré-candidato à prefeitura pelo PSOL, que também foi contaminado, não teve a mesma sorte. Ele teve de ser internado na UTI, onde permanece desde o dia 22 de agosto.
Isolamento Social
“A gente observa que quando não se tem o isolamento social, ocorre um aumento drástico de casos”, explica Ezequiel Santos, diretor da Divisão Epidemiológica da Prefeitura de Bauru. Com a baixa taxa de isolamento, os efeitos do aumento exponencial da pandemia podem ser sentidos nos catorze ou quinze dias seguintes, segundo o diretor.
Em Bauru, o registro mais alto de isolamento foi de 55%, e ocorreu em dois domingos: 29 de março e 19 de abril. A taxa ideal de isolamento é de 70%, conforme orientações do Centro de Contingência do Coronavírus em São Paulo. O número foi considerado estratégico na contenção do coronavírus para evitar a sobrecarga no sistema público de saúde.
Até o último domingo de agosto, a taxa de isolamento em Bauru foi de 44%. A cidade com a maior taxa média de isolamento no estado de São Paulo é São Sebastião, com 48%, de acordo com os dados de do Sistema de Monitoramento Inteligente de São Paulo.
Esse índice teve uma queda acentuada na segunda quinzena de julho e se manteve no mesmo patamar durante o mês de agosto na cidade. Em contraste com a queda do isolamento, na primeira semana de agosto ocorreu um pico de novos casos registrado pela média móvel semanal. O período corresponde à reabertura de estabelecimentos comerciais, que ocorreu após a aprovação da Câmara Municipal de uma Lei do Plano Estratégico do Comércio de Bauru.
A média móvel é um uma forma de contabilizar os dados para minimizar as variações nos números diários que ocorrem por atrasos de registro – por exemplo, aos domingos, em que os dados não são atualizados pela prefeitura.
Para calcular a média móvel semanal do município, a reportagem utilizou os números de casos confirmados e óbitos obtidos através dos informes epidemiológicos da Prefeitura, seguindo o critério da data que os dados foram notificados.
No dia 24 de agosto, foi registrado o recorde diário de 221 novos casos na cidade.
Apesar da corrida em torno da produção de uma vacina que seja eficaz contra a covid-19, ela ainda não existe: “a única ‘vacina’ até o momento é o distanciamento social”, lembra Ezequiel.
Para ele, a pressão pela flexibilização do isolamento social não ocorreu apenas no aspecto jurídico:
“A mídia local trabalhou contra o isolamento e a favor de abrir o comércio muitas vezes. Principalmente a mídia de rádio, a mídia falada”.
Ele comenta que quando uma autoridade fala que pode flexibilizar, a população não acata as recomendações sanitárias. “A gente viu o exemplo do presidente [da República, Jair Bolsonaro], muitas vezes indo à imprensa e falando que era uma gripezinha”.
Vale lembrar que em julho ocorreram manifestações de entidades dos comerciários, representados pelo Sincomércio e pela Associação Comercial e Industrial de Bauru (Acib), pela reabertura comercial na cidade. Walace Garroux Sampaio, presidente do sindicato, em postagem, alegou que o comércio estava sendo sufocado pela prefeitura, fazendo menção a morte de George Floyd, norte-americano negro assassinado pela polícia de Minneapolis, por sufocamento.
Segundo Ezequiel, o resultado de flexibilizar a quarentena e o isolamento é apenas um: “aumento de mortes, aumento de casos e uma situação que pode levar a cidade a um retrocesso total novamente, se continuar nessa toada”.
Volta às aulas
Nos meses de julho e agosto houve um aumento considerável de crianças e adolescentes, de zero a 19 anos, confirmados com covid-19. “Crianças também ficam graves, vão para UTIs, vão internadas e são entubadas também”, lembra o diretor da vigilância epidemiológica.
Embora a data de retorno às aulas presenciais ainda seja incerta, em reunião da Câmara Municipal, no dia 18 de agosto, representantes de escolas públicas e particulares manifestaram intenção de voltar. Para Ezequiel Santos, as pessoas não entenderam a gravidade da situação. “O momento que nós estamos na pandemia não é o momento que a Itália está, que é a Inglaterra está, que a China está. Nós estamos muito atrás deles. A gente tá no olho no furacão ainda”, declara.
SRAG
O número de óbitos por Síndrome Respiratória Aguda Grave (SRAG) foi de 136 desde março, quando ocorreu o primeiro registro, até o fim de agosto. Esse é um dos sintomas do novo coronavírus, principalmente em pacientes que apresentam quadros mais graves da doença com desconforto respiratório.
A média de óbitos por SRAG nos últimos cinco anos foi de 17,4. Isso significa um aumento de mais de 681% em 2020 até o momento.
Em 3 de julho, o Jornal Dois publicou uma reportagem sobre o crescimento anormal do número de óbitos pela síndrome. Naquele momento, o crescimento era de 331%. Raul Guimarães, especialista em geografia da saúde e professor da Universidade Estadual Paulista (Unesp) de Presidente Prudente, explicou que tudo que está acima da média dos últimos cinco anos é suspeito.
Ele explicou também que a análise da SRAG é utilizada como um evento sentinela, ou seja, é utilizada como uma pista para avaliar uma anormalidade.
Para Ezequiel, no entanto, a causa desse aumento está relacionado a uma maior sensibilidade por parte da saúde pública. Segundo ele, em contexto de epidemia ou pandemia, os diagnósticos são mais atentos aos sintomas. “Muitos nem tinham SRAG, mas uma pneumonia instalada, uma doença pulmonar obstrutiva crônica (DPOC), que atende os critérios de SRAG”.
O J2 entrou em contato com a Famesp — Fundação para o Desenvolvimento Médico Hospitalar, que administra o Hospital Estadual de Bauru, para saber sobre os relatos de pacientes que receberam alta mas não foram testados para coronavírus. A matéria será atualizada quando houver um posicionamento da organização.
Atualização dia 4 de setembro, às 12h57:
A Famesp informou ao J2 que o paciente referido na matéria, morto por coronavírus no dia 21 de agosto, “deu entrada pela primeira vez no Hospital Estadual de Bauru no dia 22 de julho, na especialidade de cirurgia de cabeça e pescoço, com quadro clínico de câncer. Permaneceu internado até 7 de agosto em ala separada e afastada de pacientes com suspeita e/ou confirmação de COVID-19. Passou por exames e avaliações médicas, com orientação de tratamento domiciliar, e até então não apresentava qualquer sintoma que o considerasse suspeito da doença.
No dia 19 de agosto, retornou à unidade com quadro respiratório e suspeita de COVID-19. Foi realizado teste PCR no dia 20 e o paciente faleceu no dia 21, devido à gravidade clínica”.
Ainda de acordo com o posicionamento da fundação: O Hospital Estadual de Bauru segue todos os protocolos estabelecidos para atendimento de casos de COVID-19, conforme as orientações vigentes da ANVISA e do Ministério da Saúde. Conforme orientação do Ministério da Saúde, os testes são realizados em pacientes que apresentam sintomas gripais e são transferidos para a ala de COVID-19. Após a coleta do exame tipo RT/PCR, o paciente fica em isolamento.