“A gente não quer dinheiro, quer terra”: moradores do assentamento Luiz Beltrame relatam pressões e ameaças durante nova disputa judicial
Localizado em Gália, a 60 km de Bauru, assentamento tem sua área principal interditada há 5 dias a mando do ex-proprietário e prefeito de Jaú, Ivan Cassaro
Publicado em 18 de dezembro de 2021
Por Victória Ribeiro
“A gente não consegue dormir há dias”, desabafou Altair Gomes, de 53 anos. Junto de sua esposa, Cícera Pedroso, Altair é morador do Assentamento Luiz Beltrame, localizado em Gália (a 60 km de Bauru), há quase 10 anos. Em frente à uma casa de madeirite, com três cômodos, o casal segura um “mandado de citação e intimação” que abre margem para um possível despejo do local onde criaram os filhos, os netos e vivenciaram o que chamam de “sonho” com suas plantações de mandioca e criação de gado.
A intimação, recebida no dia 8 de dezembro, atende aos interesses de Ivan Cassaro, ex-proprietário das terras e atual prefeito de Jaú (SP). A área, que até então abrigava 17 famílias, é motivo de disputa judicial entre Cassaro e o MST desde 2012, quando foi desapropriada por improdutividade. Em quase dez anos de existência, os moradores do assentamento conseguiram recuperar o solo considerado de “qualidade paupérrima” pela Justiça durante o processo de desapropriação, produzir e comercializar diversos tipos de alimentos.
De acordo com as famílias, foram feitas ameaças e pressões por parte de “jagunços armados” supostamente contratados por Ivan Cassaro como forma de pressão para que deixassem o local.
Na noite de quinta-feira (16), o desembargador Hélio Egydio de Matos Nogueira, do Tribunal Regional Federal da 3ª Região (TRF-3), decidiu atender um pedido da defesa dos assentados para confirmar a permanência deles na terra. A determinação vale até o julgamento de um recurso, ainda sem data, contra a decisão que devolveu a área à Cassaro em 2020. O magistrado proibiu intimidação contra as famílias e bloqueios na entrada da propriedade, e vetou pressões para a saída dos assentados.
Antes da decisão, treze famílias acabaram deixando o local. A saída dos assentados foi vista pelo MST como uma remoção, levada adiante a poucos dias do natal e da virada de ano. Militantes do movimento apontam que o INCRA (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária) se valeu de promessas infundadas de realocação em outra área para convencer as famílias a deixarem a terra. No começo de dezembro, o Supremo Tribunal Federal (STF) estendeu até 31 de março de 2022 as regras que suspendem despejos e desocupações em áreas urbanas e rurais em razão da covid-19.
De acordo com Altair, o “vai e vem” judicial prejudica a produção de alimentos. Apesar de, até então, as decisões terem sido em favor dos moradores, o assentado afirma que a pressão sofrida por parte do ex-proprietário dificulta o desenvolvimento das plantações. “Quando ele percebe que tem área de terra gradeada, ele vem e já nos interdita. Dessa vez, perdemos quase um caminhão e meio de ramo de mandioca”, lamentou Altair, que como alternativa, passou a trabalhar como pedreiro na área urbana de Gália.
Na opinião do morador, a atitude de Cassaro em tentar reaver a posse da terra se resume em querer prejudicar as famílias assentadas. “10 anos não é um dia. Para o Cassaro, isso aqui é brincadeira, é ‘tipo 1 real’, enquanto para nós isso aqui é tudo”, afirmou.
Bandeira do despejo
Segundo os moradores, o INCRA esteve no assentamento por diversas vezes durante novembro e dezembro, propondo acordos à revelia da Justiça, em favor do ex-proprietário, assumindo, nas palavras dos assentados, “a bandeira do despejo”.
Dividido em duas matrículas, o Assentamento Luiz Beltrame abriga 77 famílias de produtores rurais, sendo 60 delas moradoras da Fazenda Portal do Paraíso, desapropriada por crime ambiental, e 17 moradoras da Fazenda Santa Fé (Recreio Gleba 3), foco da disputa judicial em questão. Cassaro tenta ter sua antiga terra de volta, e conseguiu uma ordem de reintegração de posse a seu favor em 2020, depois suspensa pela Justiça por causa da pandemia.
A expectativa da defesa dos assentados é de que o julgamento de um recurso no TRF-3 mude a decisão que determinou que a antiga Fazenda Santa Fé volte para as mãos de Cassaro, ao anular a desapropriação da terra. Ainda não há data para esse julgamento.
De acordo com os moradores do Luiz Beltrame, dinheiro, compra de gado e “realocação” foram oferecidos como “forma de cooptação” por Cassaro e pelo INCRA. “Certa vez, o Cassaro esteve aqui pedindo para a gente sair da fazenda. Nós dissemos que não tínhamos para onde ir e ele respondeu dizendo que me daria o que eu quisesse. Para onde querem nos mandar, é muito longe. Nossa família está toda aqui. A gente não quer dinheiro, a gente quer terra”, declarou um assentado que não quis se identificar.
De acordo com Matheus Piotto, advogado e militante dos movimentos de reforma agrária da região, a “realocação” representa uma “manobra jurídica”, na medida em que tenta descaracterizar a ação de despejo com a transferência das famílias para outra área.
Em nota ao J2, o INCRA diz que “a pedido dos assentados, a transferência foi feita para o assentamento Vau de Jaboque, localizado no município de Agudos, uma área nova, ainda em fase de implantação, a 85 km de Gália”. A medida, de acordo com a autarquia, foi viabilizada por meio de políticas públicas do governo federal que, futuramente, possibilitarão a construção de moradias e perfuração de poços. Na opinião de Márcio José, membro da direção estadual do MST e morador do Luiz Beltrame, a ausência de moradias no espaço disponibilizado caracteriza a situação como uma ação de despejo. “Crianças e idosos saíram daqui e foram para lá, sem qualquer estrutura. Se isso não é despejo, é o quê?”, indagou.
No site oficial do MST Brasil, o movimento reivindicou a suspensão imediata da remoção das famílias por parte do INCRA e a manutenção de suas moradias. De acordo com o movimento, a remoção das famílias após a oficialização do assentamento abre “precedentes muito graves nos direitos fundamentais das famílias assentadas de todo o Brasil”.
Vontade acima da lei
Na tarde de 16 de dezembro, o Jornal Dois esteve em Gália na tentativa de conversar com as 5 famílias que decidiram continuar na área da antiga Fazenda Santa Fé. Ao chegar, a entrada da equipe foi impedida por Jorge Ivan Cassaro, filho do ex-proprietário Jorge Cassaro, e aproximadamente 15 homens. Jorge, que apresentou-se como proprietário da área em questão, foi orientado por uma mulher, por meio de um rádio comunicador, a exigir documentação da equipe e ameaçou chamar a polícia caso houvesse insistência.
Como argumentação, o filho de Cassaro apresentou um “interdito proibitório” emitido pelo Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (TJSP). O mecanismo judicial serve para impedir agressões iminentes que ameaçam a posse de alguém. Segundo o advogado Matheus Piotto, o TJSP não teria competência para analisar o caso. Quando uma propriedade privada passa por processo de desapropriação para fins de reforma agrária, que é o caso da antiga fazenda Santa Fé, a competência para decidir sobre aquela terra passa a ser da Justiça federal.
“A área em questão é de interesse da União, portanto a responsabilidade decisória é da Justiça Federal e não da juíza estadual de primeiro grau que concedeu o interdito”, explicou.
Com ajuda dos assentados da antiga fazenda Portal do Paraíso, também parte do Assentamento Luiz Beltrame, a equipe do J2 conseguiu chegar às famílias por outra via de acesso, a partir da utilização de um trator. De acordo com Altair, a área principal estava, até então, interditada há 3 dias. “Disseram que poderíamos entrar e sair, mas sei que se eu passar pela porteira, eu não volto. Existe muita pressão envolvida. Estou sem trabalhar, sair para buscar alimentos e receber pessoas da família”, lamentou.
Ricardo Gomes, de 48 anos, contou que não consegue dormir desde a chegada dos homens no local. “A gente fica com medo, né? De noite, eles ficam andando para cima e para baixo de moto e acendendo farolete em direção às nossas casas”. Para Márcio José, Ivan Cassaro tem uma postura “coronelista, que quer impor sua vontade acima da lei”. “É lamentável que um prefeito, um homem público, que tem Jaú sob sua responsabilidade, possa estar cumprindo um papel como esse”, comentou o membro da direção estadual do MST.
Na ocasião em que o J2 esteve na presença de Jorge Ivan Cassaro, o filho do ex-proprietário afirmou que em “nenhum momento houve ameaça ou impedimento das famílias que continuam no local de circularem, tendo havido apenas uma discussão com a advogada e diretora da Associação Brasileira de Reforma Agrária (ABRA), Sabrina Diniz”.
Efeito suspensivo
Na decisão que vetou intimidações e bloqueios contra os assentados, o desembargador Hélio Nogueira, do TRF-3, frisou que a determinação para reintegrar a posse da terra para Cassaro está suspensa pela Corte, e que medidas adotadas pelo ex-proprietário contra as famílias seriam desobediência de ordem judicial.
“Os documentos trazidos pelos requerentes demonstram que eles têm sido pressionados a deixar a propriedade, por meio de obstrução ao adequado exercício da posse, garantida por decisão judicial, bem como por atos praticados pelo INCRA. Em que pese existir decisão de reintegração de posse, diante da improcedência da ação de desapropriação, o certo é que seus efeitos encontram-se suspensos por determinação deste Tribunal, de modo que os proprietários do imóvel não podem adotar medidas para obstar o regular exercício da posse”, escreveu o magistrado.
“Nesse contexto, deve ser garantida a decisão proferida nestes autos, devendo os requeridos absterem-se de qualquer prática intimidatória das famílias que permanecem na propriedade, devendo ser retirado qualquer aparato que impeça o livre acesso à Fazenda, sob pena de caracterização de desobediência por descumprimento de ordem judicial”, diz trecho da sentença.
Apesar da decisão, os assentados informaram, na manhã deste sábado (18), que o filho de Ivan Cassaro e os homens contratados permanecem na portaria principal do assentamento, controlando a circulação das pessoas e contrariando a sentença emitida pelo TRF-3.
Na tarde de sexta-feira (17), cerca de 30 pessoas, dentre elas movimentos sociais, sindicatos, lideranças indígenas, políticos e membros da sociedade civil, estiveram no local como forma de apoio às famílias que continuam na antiga fazenda Santa Fé.
Vai e vem na justiça
Em junho de 2020, o TRF-3 suspendeu a ordem de reintegração de posse na antiga Fazenda Santa Fé por causa da pandemia de covid-19. Em sua decisão, o desembargador Hélio Nogueira considerou o “alto índice de transmissibilidade do novo coronavírus e a elevação significativa do risco de contágio” que poderia ocorrer caso se concretizasse a reintegração de posse.
Em matéria publicada em maio de 2020, quando as famílias da antiga Fazenda Santa Fé estiveram na iminência do despejo em decorrência da reversão judicial da desapropriação por Ivan Cassaro, o Jornal Dois abordou as disputas judiciais, iniciadas em 2009, envolvendo o ex-proprietário, o INCRA e os assentados do Luiz Beltrame.
Uma decisão daquele mês chegou a dar um prazo de 120 dias para desocupação. Parte dos moradores do Luiz Beltrame entrou com um recurso para tentar rever a decisão. Foi a partir desse movimento que saiu a suspensão da reintegração de posse, válida até a análise do mérito do processo.
O INCRA foi admitido como assistente dos assentados e foi convocado a se manifestar sobre a situação. Para isso, providenciou uma inspeção, em que se observou que “cada um dos assentados tornou a terra produtiva, tanto que suficiente para a subsistência das famílias, e ainda gerando excedente suscetível de comercialização”.
Na época, o órgão afirmou que não existiam lotes vagos para realocar as famílias no caso do despejo, e se mostrou favorável ao pedido dos assentados para que a Justiça autorizasse a concessão das terras.
“O risco de reintegração para nós é um problema muito grave”, define Márcio. “Já vão para dez anos que as famílias estão assentadas formalmente, foram selecionadas através dos critérios minuciosos do INCRA, foram homologadas e foi gerado o SIPRA (Sistema de Informações de Projetos de Reforma Agrária), que é uma espécie de CPF de cada assentado. Então as famílias não estão irregulares, elas estão legalmente assentadas”.
Transformação do solo
Com cerca de 10 anos de existência, as famílias do assentamento Luiz Beltrame conseguiram recuperar o solo considerado “improdutivo” pela Justiça e gerar renda suficiente para a sobrevivência das famílias.
De acordo com dados do MST para a safra de 2018, o Assentamento Luiz Beltrame comercializou em torno de 100 cabeças de gado, 300 toneladas de mandioca pré-cozida, 5 mil caixas de maracujá, 200 sacas de feijão orgânico, 50 mil dúzias de milho verde, 2 mil caixas de quiabo, 8 mil toneladas de manga, entre outros produtos hortifrutigranjeiros, como mamão, manga, cítricos, banana.
O impacto do Luiz Beltrame na região levou à aprovação, em março de 2019, de duas moções pela Câmara Municipal de Gália, uma de aplausos ao INCRA, pelo papel “fundamental” desempenhado no assentamento Luiz Beltrame, e outra de apoio às 17 famílias, assinalando que a câmara “se solidariza com a situação vivenciada por esses cidadãos”. As moções foram apresentadas pelo vereador Rinaldo Pinheiro de Carvalho (PSL).
Por conta das disputas judiciais vivenciadas na área da antiga Fazenda Santa Fé, a maior parte da produção vem da gleba da antiga Fazenda Portal do Paraíso, que também possui maior número de assentados. Ainda assim, segundo Márcio José, a produção “quebra o argumento de que a terra era inválida e improdutiva para a agricultura”.
“É um assentamento altamente viável do ponto de vista econômico e do ponto de vista social. Isso quer dizer que o despejo das famílias é um retrocesso não só na política de reforma agrária mas um retrocesso da situação socioeconômica do município”, defende Márcio.
O outro lado
Na tarde de ontem (16), o Jornal Dois entrou em contato com Audrey Vieira Leite, advogada de Ivan Cassaro, em busca de posicionamento. No momento da ligação, Audrey informou que não haveria possibilidade de produzir a defesa em nota por uma “questão de tempo”, mas que poderia conversar sobre a situação envolvendo a antiga fazenda Santa Fé.
De acordo com a advogada, um pedido de indenização contra o INCRA está em curso, como forma de “mostrar o prejuízo que Cassaro adquiriu enquanto esteve longe da terra”. Segundo ela, isso explica o porquê do órgão estar se movimentando para a retirada e realocação das famílias.
Questionada sobre o controle que vem sendo feito nas vias de acesso ao assentamento, a advogada afirmou que apesar de não possuir posse, Ivan Cassaro possui a matrícula da antiga fazenda Santa Fé, o que lhe dá o direito de administrar as entradas e saídas na propriedade. De acordo com ela, as famílias que permanecem na área possuem livre circulação, sendo esta uma maneira de impedir invasão de terceiros, como do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST).
“Não é uma forma de exercer pressão. Desde que o Incra começou a se movimentar, o MST passou a ameaçar invadir o imóvel e a visitar os assentados para convencê-los a continuar na área”, declarou.
Segundo a advogada, nenhuma ameaça ou proposta foi feita aos assentados por parte de seu cliente, que “não possui índole para se opor à lei”. “O Ivan está quieto, quem está fazendo a retirada das pessoas é o Incra. Claro que isso é bom para o meu cliente, mas essa articulação não vem dele”, afirmou.
Além das informações já citadas ao longo da reportagem, o INCRA informou que “as famílias assentadas estariam manifestando preocupação com a decisão judicial que, à época, anulou o processo de desapropriação da antiga Fazenda Santa Fé e que embora ainda haja recurso pendente, as famílias careciam de segurança jurídica para dar continuidade às culturas de ciclo longo que constituem a principal atividade econômica do assentamento”.
“Após várias reuniões com as famílias assentadas, entre novembro e dezembro, a maioria das famílias optou pela transferência para outra área”, tendo essa decisão sido ratificada em assembleia realizada no dia 7 de dezembro. Dessa forma, a realocação atende à demanda das próprias famílias assentadas e tem o objetivo de oferecer segurança jurídica para que elas possam continuar produzindo, sem o risco de eventuais decisões que impeçam sua permanência na terra”, diz trecho do documento.
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