A alma subversiva das ruas
Graffitis e pixos explodem nos quatro cantos de Bauru, nas periferias, vilas e no centro; arte, protesto e expressão estampam desde esgotos até picos de prédios, e questionam: a quem é dado o direito à cidade?
Reportagem publicada em 27 de setembro de 2018
O zap apitou sábado à noite no celular de Klaubers Cisco, no Parque Roosevelt, zona norte de Bauru. A mensagem vinha do Mary Dota, lado leste da cidade. Do outro lado da conversa estava Paulo Henrique, vulgo Urso, que perguntava: “Vamo pintar amanhã?”.
Cisco responde com um “demoro, tem lugar?”.
“No Rio Bauru”.
“Demoro”.
Por volta das 7h do dia 16, um domingo de setembro, Cisco sai de moto da sua casa e tromba com Urso. Equipados com tinta e latas de spray, além da metade de uma escada de metal dobrável, eles exploram o leito do Rio Bauru na avenida Nuno de Assis, a partir do Terminal Rodoviário em direção ao trevo com a rodovia Marechal Rondon.
Os dois encontram uma margem adequada na altura da quadra 18 da Nuno. Dão a volta na kombi estacionada à beira da avenida — que aos domingos é ponto de venda de frutas e verduras — e chegam num afluente do rio: uma galeria concretada de esgoto, que corre encosta abaixo em direção ao rio.
Sem cerimônia, pulam na “água” e atravessam a galeria, passando por debaixo do asfalto e dos carros da Nuno de Assis. Na boca do túnel, a galeria vomita água e esgoto no Rio Bauru a uma altura de 1 metro. Já no leito, a dupla percorre mais uns 50 metros rio acima, até o lugar escolhido para pintar.
“O pioneiro no Rio Bauru é o Fubas, o Nojo”, explica Urso. “Se não me engano os primeiros que fizeram ali foram ele e o Beize, e depois ele fez um grapixo mais pra frente. Ninguém mais mexeu lá”, completa.
A arte, a rua e quem tá no corre
Não tem diferença entre graffiti e pixação, pelo menos para quem tá no corre — quem faz a arte de rua acontecer. Surgidas no final da década de 1980, as duas vertentes são linguagens da arte de rua e foram influenciadas pelo movimento punk e pela cultura Hip Hop.
“Essa coisa é horrível porque não existe uma guerra da pixação e do graffiti. São vertentes diferentes do mesmo mundo”, dispara Vini Vira Lata, grafiteiro que ministra oficinas de graffiti na Casa do Hip Hop, dentro da Estação Ferroviária. “Tem grafiteiro que gosta de fazer onde não é autorizado e, caso a polícia pegar, ele assina o mesmo BO do pixador. É a mesma coisa, o tratamento vai ser o mesmo”, destaca.
A regra da rua é clara: não se cobre a arte de outros, seja onde for. “Eu acho bacana essa lei da rua de o graffiti não atravessar a pixação e vice-versa”, conta Mari Monteiro, grafiteira de Ibitinga que está há 7 anos em Bauru. Para ela, o graffiti não existe para combater a pixação. “Não é para cobrir pixação e ‘embelezar’ o lugar. Tem que respeitar o que as pessoas gostam”, afirma.
Dos muros para os livros, a arte de rua também é foco de pesquisas em universidades. Em um projeto concluído este ano, o antropólogo Alexandre Barbosa Pereira, professor da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), analisa o universo do graffiti e da pixação em São Paulo.
O professor chega até a diferenciar a ideia de pixação (com “x”) de pichação (com “ch”). A palavra escrita com “ch” se refere a frases e inscrições legíveis, em geral poesias ou protestos. Já a palavra com “x” simboliza um tipo de grafia entendida apenas pelos integrantes do movimento, que pode envolver organização de grupos. Os pixadores, segundo o professor Pereira, buscam lugares de grande visibilidade e acesso difícil para deixar a sua marca, numa ação que pode gerar questionamentos sobre o espaço urbano e os possíveis limites da arte.
“Falta compreensão. Eu vejo muitos pixos por aí que pra mim é obra de arte também”, opina Cisco. “O cara dedicou um momento da vida dele pra fazer aquilo. Não tem que rotular nada. Tudo é válido e vai da criatividade de cada um. Respeito é o que tem que prevalecer”, ressalta.
O JORNAL DOIS inaugura uma série de conteúdos com a missão de aprofundar o conhecimento e valorizar a arte de rua — especificamente o graffiti e a pixação. Nossa posição de mídia independente e popular oferece aqui uma outra visão sobre a arte de rua, procurando ao máximo se afastar de preconceitos estabelecidos e reproduzidos em outras mídias.
Com a palavra, três artistas do graffiti bauruense:
Graffiti x pixação
Cisco
Mano, na minha visão é uma coisa só. O cara tá expressando na parede da mesma forma que eu estou com o graffiti. Eu parei de pixar por questão de letras, eu não tinha o mesmo desenvolvimento igual os pixador de hoje. E hoje tem muito pixador monstro aqui na cidade. Admiro vários, troco ideia com vários, respeito todos sem exceção, e pra mim não tem diferença. Pixador e grafiteiro, máximo respeito a todos e da mesma forma que eu to fazendo o meu graffiti na parede pra eu passar eu visão daora sobre o mundo o cara tá subindo no prédio pixando o barato lá em cima querendo passar a visão dele pro mundo.
Falta compreensão. Eu vejo muitos pixos por aí que pra mim é obra de arte também. O cara dedicou um momento da vida dele pra fazer aquilo. Da mesma forma que eu fiz. Usei mais cores, mas isso daí pra mim não diferencia em nada. Mas só o fato de você dedicar aquele minuto pra você fazer um negócio, pra mim já é válido. Não tem que rotular nada. Tudo é válido e vai da criatividade de cada um. Respeito ao que tem que prevalecer. Da minha parte eu gosto muito de pixação. Admiro. Oloco, o cara escalar um prédio pra mandar o pixo lá em cima, você tem que tirar o chapéu pro cara. O graffiti eu chego, faço ali e tal. Não vou escalar um prédio de não sei quantos andares pra mandar o barato lá em cima. Olha os trampos na vertical que tão aparecendo aí. Cé loko, os caras são foda.
Mari
A pixação e o graffiti andam junto. Os dois são próximos. Se existe alguma diferença é que muitas vezes o graffiti vai ser um desenho e a pixação são letras. Mas tem também graffiti que é letra. E um veio próximo ao outro, eles caminham muito junto. Não adianta falar que pixação não é arte porque é mais forma de protesto que o próprio graffiti. Arte é uma coisa muito de gosto. Tem gente que ama o Romero Britto e tem gente que fala que não é arte. Tem gente que ama a pixação e tem gente que fala que não é arte. Mas o respeito vem acima de tudo. Tem que respeitar o que as pessoas gostam. Eu acho bacana essa lei da rua de o graffiti não atravessar a pixação e vice-versa. Às vezes acontece da gente pedir pra grafitar um muro e usar como desculpinha que é para não ter pixo, mas não para cobrir a pixação e “embelezar” o lugar.
Vini
Essa coisa é horrível porque não existe uma guerra da pixação e do graffiti. São vertentes diferentes do mesmo mundo. A guerra é mostrar que a periferia e o pessoal que parece não ter voz, na verdade tem voz e a voz é essa. Essa é a nossa causa: mostrar que temos voz, a voz do pessoal desfavorecido, do pessoal que não estudou arte, a arte que ele estuda e ver a rua. E hoje o graffiti tá em bienal, em livros, e mesmo assim a maior exposição é a do céu aberto.
A gente não se contenta em deixar nossa arte num museu, numa galeria, num livro, num caderno ou numa tela. A gente quer deixar nossa arte no centro da cidade. Eu curto fazer isso de forma autorizada porque aí eu tenho mais tempo, pra poder fazer o que eu estudei. Outros já não curtem fazer autorizado e enfim, não existe essa guerra.
Tem grafiteiro que gosta de fazer um graffiti onde não é autorizado e, caso a polícia pegar, ele assina o mesmo BO do pixador. É a mesma coisa, assinam o mesmo BO. O tratamento vai ser o mesmo. Eles estão juntos ali de alguma forma.
Cena em Bauru
Cisco
Eu acho que Bauru é um celeiro. Tem muito cara bom. Muito cara monstro. Sem exceção, Bauru é pesado tanto no vandalismo quanto no graffiti, pixação. Os moleque tá ligado e são monstro. Pra mim, máximo respeito porque Bauru tem muito cara pesado na arte.
Hoje em dia é muito mais fácil do que antigamente. Porque é mais fácil você ter acesso ao material. Eu não fazia graffiti na época de escola porque não tinha uma lata de spray, um bico, não tinha essas coisas. Hoje em dia na loja dá pra comprar tudo isso, mas antigamente não.
Daqui eu conheço poucos que conseguem sobreviver com o graffiti. Tem muito cara bom que podia estar ganhando dinheiro pra caramba que falta valorização. Falta mais evento, mais projetos relacionados ao graffiti. Se você parar pra raciocinar o único evento de graffiti daora que a gente tem aqui em Bauru é a Semana do Hip Hop. E é um vez no ano, pontual.
Mari
Bauru tem bastante gente que pinta. A maioria homens, mas as meninas vieram chegando aos poucos. Tem eu, a Gaúcha, a Bruna, e tem mais umas meninas que pintam. Mas é importante a gente chegar na cena também, até pra abrir espaço para outras meninas.
Vini
Hoje os pixadores estão mais em atividade no centro do que os grafiteiros. Porque o centro é a articulação da nossa cidade. Essas articulações são os caminhos dos ônibus, caminhos que a periferia vai passar e vai ver o pico que você pegou, o muro que você pegou, o adesivo que você colou, a assinatura que você fez. Então os caminhos dos ônibus são as veias e o coração é a cidade. O foco maior de um grafiteiro ou pixador — ou de qualquer pessoa que mexe com street art, stencil, lambe — é o centro. Porque é no centro que você vai ver tudo. O centro sempre foi dos pixadores. Sempre foi deles e não tem essa guerra de um ter que tampar o outro. A guerra é para tapar os espaços. Quem tá na rua enxerga dessa forma. Essa é a lei.
Poder público
Cisco
Falta um pouco de força de vontade do poder público porque a mão de obra em si, se eu chegar agora e sair ligando pra rapaziada, tenho certeza que todo mundo vai colar e vamo estralar. Mas o que falta é aquela ajudinha pra fazer o barco andar. Fazer o negócio ir pra frente mesmo. O que acontece é que muito cara bom da cidade tá indo para outros lugares porque outros lugares estão beneficiando o pessoal daqui. Tem bastante grafiteiro monstro que as outras cidades de fora apoiam. Mas Bauru não vai.
Desenvolvimento
Mari
Uma vez eu fiz um desenho de um coração. Aí pensei, “nossa, um coração humano, eu sou uma pessoa tão amor, tão alegre”. Então comecei a desenhar os corações, e já ficou marca. Todo mundo vê coração e reconhece que é meu. Isso foi 2015 e a partir daí não parei mais.
O coração é sempre acompanhado por frases, que são referências minhas. Eu sempre gostei delas porque elas geram algum impacto nas pessoas. Aí eu uni o coração com as frases. O coração pra mim representa um sentimento verdadeiro e puro e para lembrar que somos humanos: sujeitos a acertar e errar. A gente não é perfeito. Então por isso é um coração humano e não um coração figurativo, de desenho. As frases não é para ninguém específico, não é nenhuma indireta.
Estudo é sempre. Às vezes eu fico sem pintar e já parece que me dá um treco. Precisa de muita pesquisa na internet e é um processo bem complicado. Além disso eu uso a pintura como um refúgio, porque eu tenho depressão, e tinha alguns problemas que não curavam com nada, nem com bebida, filmes, séries. Parecia que aquilo ficava martelando, e desenhar acabava me distraindo. Então eu acho que a arte me salvou mesmo. Era como uma terapia, que eu conseguia expressar ali o que estava sentindo.