“Nós ainda estamos em guerra”
Não podemos ser inocentes a ponto de acreditar que algum dia houve paz no Brasil; vivemos uma guerra e ela obteve mais um importante marco nas últimas semanas
Publicado em 7 de agosto de 2021
Por Guilherme Matos, Marcos Martins Ferreira e Isabela Otani, do Coletivo Afronte Bauru
O afirmação que dá nome a esta coluna foi feita por Ailton Krenak, filósofo e líder indígena, no documentário Guerras.doc., após Krenak perguntar ao entrevistador porque ele o olhava com “uma cara tão simpática”. Desde que o primeiro colonizador pisou na nossa praia não houve paz para os indígenas. Os invasores construíram esse país por meio da exploração, escravização, assassinato e estupro dos povos que ocupavam o território brasileiro.
Os invasores, além de covardes, são gananciosos e nunca estão satisfeitos. Depois de consumir quase toda a Mata Atlântica, eles avançam sobre o Cerrado e a Amazônia com agropecuária, queimadas, desmatamento e mineração. Tudo isso a duras custas aos indígenas, que sofrem com o aumento da violação de seus direitos e suas terras nos últimos anos.
Por isso, a fala de Krenak é tão precisa. Não podemos ser inocentes a ponto de acreditar que algum dia houve paz no Brasil. Vivemos uma guerra e ela obteve mais um importante marco nas últimas semanas.
Borba Gato
Alguns invasores tinham como profissão avançar para o interior do país assassinando e escravizando indígenas, eles foram batizados por historiadores como “bandeirantes”. Nome extremamente inapropriado, visto que deveriam ser chamados pelo que eram: genocidas.
Os genocidas avançavam do litoral ao interior do país para destruir aldeias, capturar escravizados e roubar recursos. Para a burguesia, esses atos foram um deleite. Os criminosos são apresentados nas escolas como parte importante da formação do país e homenageados em nomes de ruas, praças, cidades e bairros. Além de receberem monumentos na principal capital brasileira.
É uma cruel celebração do massacre e da barbárie.
No dia 24 de Julho, durante os protestos contra Bolsonaro, o grupo “Revolução Periférica” ateou fogo em um desses símbolos da burguesia: a estátua do Borba Gato (1628-1718), bandeirante com um vasto currículo de crimes e violações dos direitos humanos (como todos de sua laia).
Esses atos de destruição dos símbolos da burguesia vêm acontecendo ao longo da história na medida em que movimentos populares começam a questionar os motivos que as mantém em pé e o porque foram construídas. Isso aconteceu na Revolução Russa, quando a estátua do czar Alexandre III foi derrubada pelos trabalhadores, aconteceu nas manifestações do Black Lives Matter ano passado, com a destruição de estátuas de escravocratas, e está acontecendo agora, em atos semelhantes realizados por nossos primos latinos no Chile e na Colômbia. O ato de derrubada desses monumentos não se trata de um apagamento histórico e sim de reescrever a história.
A burguesia constrói seus símbolos com o objetivo de passar uma mensagem para a população, uma narrativa que representa um recorte histórico que deve ser lembrado e como ele precisa ser lembrado. A estátua do Borba Gato é um exemplo disso, com seus 10 metros de altura ela representa um homem branco segurando um rifle, semelhante a imagem utilizada na campanha do governo federal no dia do agricultor. É o genocida atual reverberando os genocidas do passado. Essa é a covarde necessidade de se colocarem sempre na forma de homens brancos carregando armas como um símbolo fálico poderoso.
A legítima queima do monumento representa um capítulo de resistência ao massacre que os brasileiros vêm sofrendo. Os espaços públicos são onde as mudanças são concretizadas e é necessário demonstrar que nele, não deve haver espaço para homenagear criminosos.
Mostramos nossa resistência em atos como esse. No entanto, a burguesia – utilizando de seus aparatos de repressão – não deixou barato. Afinal, é uma guerra contra um inimigo que não mede recursos para manutenção de seu poder, conquistado e mantido por meio do sangue de indígenas e negros.
Galo de luta
Paulo Roberto da Silva Lima, conhecido como Galo, se apresentou no dia 28 de Julho ao 11° Distrito Policial de Santo Amaro. Galo é uma liderança do grupo “Revolução Periférica” que assumiu a autoria da queima da estátua. Ele se apresentou visando colaborar com a investigação e explicar os motivos que levaram ao ato.
A polícia paulistana, racista em seu âmago e submissa aos interesses da elite, prendeu Galo e sua esposa injusta e arbitrariamente. Géssica Silva Barbosa nem mesmo estava no ato, no dia dos protestos tinha ficado em casa cuidando da filha do casal de 3 anos. Dias depois, Géssica foi solta.
Mas Galo continuou preso, sob tortura. Completados nove dias de prisão indevida, finalmente foi concedido ao Galo o Habeas Corpus, graças à mobilização popular. E embora tenha tido a garantia de sua soltura, até o momento da publicação desta coluna, ele ainda não foi efetivamente solto, e a juíza Gabriela Bertoli determinou nova prisão preventiva ao militante nesta sexta-feira (6).
Toda essa articulação deixa evidente: a prisão de Paulo é um ato político que deve acender um alerta para todos os envolvidos com militância. Galo é entregador de aplicativo, depois de ser prejudicado pelas práticas neoliberais do Ifood, ele mergulhou de cabeça no ativismo e iniciou o movimento dos entregadores antifascistas.
Não é surpreendente que os fascistas busquem formas de detê-lo para intimidar outros envolvidos com movimentos sociais.
O jurista Silvio Almeida, em um fio no twitter, afirmou: “A vida de pessoas como o Galo de Luta sempre servem como campo de testes para projetos autoritários. Afinal, se alguém com a liderança e visibilidade dele pode ser pego por algo que nem cabe prisão imaginem o que poderia ser feito com alguém com menos articulação?”
“[…] Ele não está preso por causa da estátua. Está preso pelo que significa a luta dele neste momento de avanço da precarização do trabalho; está preso para mandar um recado a todos que ousarem desafiar o poder e seus símbolos”.
Reforçamos que a liberdade de Géssica e o habeas corpus de Galo foram fruto da mobilização social. Se dependesse do sistema jurídico, instrumento político da burguesia, todos os lutadores seriam mantidos presos e silenciados. Ainda estamos em guerra. Mas como disse Maiakovski “as ameaças e as guerras havemos de atravessá-las, rompê-las ao meio, cortando-as como uma quilha corta as ondas”.
Nós do Afronte nos colocamos ombro-a-ombro com aqueles que não recuam na tarefa de se colocar no lado certo da história. Até a vitória!