Ainda sobre o 29M: bastidores
É preciso saber que o protesto não começou no dia anterior, montando materiais, nem quando o ato foi marcado. Começou há anos, e continua sendo construindo dia-a-dia por companheiros que vivem e morrem pela causa e avistam no horizonte a esperança
Publicado em 5 de junho de 2021
Por Matheus Versati, colunista do J2
Acordamos às 7 horas da manhã, com companheiros já mandando mensagem no meu celular. Me troco, e sem comer nada pego a moto e vou buscar o companheiro de luta Fábio, que está me aguardando na Praça Rui Barbosa.
8:10 da manhã, chegamos na comunidade do Manchester onde já havia chegado a companheira de luta Jeny, que está nos aguardando em frente ao ônibus disponibilizado por outros compas de luta. Jeny gastou mais de 30 reais com Uber para chegar aqui.
8:30 Estamos com a comunidade do Manchester e com a Associação de Moradores que irão com a gente para o protesto, em sua maioria mulheres. Para algumas delas este será o primeiro protesto ao qual vão participar. Outras já foram em outros, por moradia, em outras comunidades onde moraram, já lutaram muitas lutas por sobrevivência, perderam muitas, mas se mantém em pé e lutando, pois ainda estão vivas, agarram seus filhos, e ensinam a eles que, para nós, a conquista só chega com muita luta, e em muitos frontes diferentes.
Nossa saída atrasa, porque uma família ainda não chegou para a saída do ônibus. A Tatiana Borgo, presidente da associação, vai buscá-los, enquanto isso ficamos conversando. O motorista do ônibus se mostra simpatizante com o nosso protesto, e simpatizante pela luta da comunidade por melhorias para o Manchester.
9:10 A Tatiana volta com as famílias que faltavam. Uma senhora vem a passos largos, essa senhora não pega cesta básica com a gente, essa senhora não faz parte da associação. Mas ela quer lutar, e soma com a gente no ônibus.
9:35 Chegamos no protesto no centro da cidade, a Rodrigues [avenida Rodrigues Alves] já está fechada. Vamos direcionando a comunidade, que ao chegar se encontra com a comunidade do Primavera, que havia vindo ao ato com a companheira Rafaela, e então as comunidades se misturam, muitos se conhecem, de muitas lutas e marcas da vida. Somos recebidos pelo Primavera com abraços e carinhos.
Lá está a Tia Hut, lutadora, moradora do Primavera. Ela havia me falado antes do protesto que talvez não conseguisse seguir a marcha, pois não está muito bem, está com as pernas ruins. Mas quando a marcha começa, não há ninguém que a convença a não marchar na luta com a gente.
A atitude que mais me toca é quando ela pega a nossa bandeira, a bandeira rubro negra, e fala: “Parece a bandeira do São Paulo” (risos). Eu digo para ela que aquela bandeira é do Anarquismo, que é a minha ideologia, então ela levanta a bandeira e diz “então eu vou ficar com ela”. Pergunto a ela: “Então você é anarquista agora?”, ao que ela me responde com um sorriso: “Eu sou Versati, to com vocês”. Sem dúvida eu já ganhei meu dia com isso.
Um dia antes do protesto estávamos montando as faixas de segurança, junto com o Marcos, a Paula, a Rafa, a Melissa, a Carol e a Thais. Foram cerca de 4 horas de trabalho, e agora lá estão as faixas, estendidas na Rodrigues Alves, fruto de um longo trabalho, que valeu muito, ainda mais pelas companhias.
No início do protesto as bandeiras rubro negras estão balançando, as da minha organização. Vou cumprimentar os companheiros. O Arthur, sem dúvida um dos militantes mais inteligentes da cidade, ele me apresentou o Anarquismo em 2013 nas jornadas de junho, e desde então veio me ensinando, e puxando minha orelha para me alinhar com os princípios libertários. Ele sem dúvida mudou o rumo da minha vida, através dele vi o mundo libertário, sem ele nenhuma atividade que realizo hoje existiria, tenho a honra de tê-lo como amigo.
Reencontro no protesto centenas de rostos familiares e de amigos, amigos que travam a luta ombro a ombro com a gente há anos nessa cidade, e no primeiro protesto deste ano, eles se arriscam, mais uma vez na linha de frente dessa luta, mais do que militantes, sobreviventes, pois nunca deixaram a chama da esperança de um mundo melhor morrer.
Ainda que manter essa chama acesa não seja fácil: as vezes alimentamos ela com carinho, as vezes com livros, às vezes com ódio, às vezes com desespero, e assim por diante, mas estamos sempre mantendo ela acesa, luta após luta, derrota após derrota, se alimentando de pequenas conquistas nesse trajeto, e se levantando sempre.
Lógico que alguns rostos fazem falta. Bibiana e Lucas Mendes, nossos jornalistas do Jornal Dois, não estão aqui mais com a gente, seguem a luta em Brasília, rostos que sempre estiveram presentes, em todas as atividades na cidade, agora seguem lutando a mesma luta do outro lado do país. Brasília não tem noção das grandes pessoas que vivem entre eles agora. Mas a luta é assim, cada um que parte ou se afasta, nós sentimos a falta, como um parente querido que foi se mudar para longe.
O que é mais triste neste protesto que eu não poderia deixar de comentar: este é o primeiro que acontece sem o Grande Roque Ferreira. O ultimo que ele participou foi o protesto Antifascista contra o Racismo, e agora, as ruas ali que o tivera por anos, as ruas ali que tinham seus gritos como parte dela, não os ouve desta vez. O primeiro protesto nos quase 10 anos de luta dessa cidade que não temos uma fala do companheiro.
Mas lá está Tatiana Calmon Karnaval do de Grão em Grão, sua esposa, que segue forte na luta, nos inspirando e nos encorajando, com olhar forte, com palavras sinceras de luta, e não palavras ao vento, palavras que ela acredita de verdade. Fiel a suas convicções, de longe até parece que ela é brava, mas de perto ela é inspiradora. Se não fosse por ela, o Manchester não estaria aqui neste dia.
De repente escuto uma fala agressiva, incisiva, não há dúvidas: é o Almir Ribeiro, muito conhecimento para passar sempre, mas sempre indignado. Enquanto muitos discutem se devem se isolar e torcer para as coisas melhorar, e outros se devem ir para as ruas e tentar mudar, Almir já se decidiu há muito tempo, “temos que tacar fogo na porra toda”, “já passou da hora de um levante radical no país”. Para Almir, a prática tem que andar junto com a teoria. Nem antes nem depois. Ensinamentos que levo no coração.
O protesto segue, a OASL e o Chão de Giz fecham as ruas por toda a cidade para o ato continuar em segurança. Muita tensão nestes momentos, mas jovens se colocam com o peito à frente e seguram os carros junto de nós.
Eu me exalto facilmente, então o professor Well do Chão de Giz me acalma, grande companheiro. Não lembro de uma Greve dos Professores na Capital em que ele não esteve nos fazendo rir.
O protesto segue, com o Marcos conduzindo grande parte do ato com suas falas pontuais no microfone, e chamando os gritos de ordem. Ele sem dúvida é um pilar para tudo o que estamos construindo, e sem dúvida, um dos poucos quadros de lideranças a esquerda combativa, que vem crescendo ano após ano, incomodando muito os velhos princípios da esquerda, um companheiro afiado e fiel à luta.
As meninas da Segurança e Saúde estão o tempo todo puxando nossas orelhas para o distanciamento seguro, e espirrando álcool em nós.
Fim do ato, mas não o fim da cena
No fim do protesto uma moradora do Primavera passa mal. No começo as garotas acham que é diabetes, pois ela não para de chorar, mas é pior: ela está chorando por ansiedade e dor, dor por saber que sua família está passando fome, notícia que ela recebeu no dia anterior, e ela não pode ajudar pois mal tinha para ela. Então a Carol a estudante de Medicina da USP acompanha ela, com uma atenção não obrigatória, nem apenas profissional, mas sim uma atenção de empatia, de coração tentando ajudar a moça. Ela então me pede para que a gente ajude a família dessa mulher, que parece morar no Nicéia.
Eu ligo imediatamente para Tatiana Calmon, que me diz ter 4 cestas básicas na casa dela, e imediatamente os advogados Guilhermo Mazin e Thales Coelho se disponibilizam para ir buscar a doação lá na Vila Dutra e levar para a família do Nicéia. Esses advogados são pessoas fantásticas, junto com o Victor Almeida, eles fazem vários trabalhos para nos ajudar, todas as lutas que travamos, podemos contar com eles, algo que faz toda a diferença para chegar onde estamos hoje. Na verdade, acho que se não fosse por eles nos orientando, nós com certeza já estaríamos presos.
11:55 O protesto já encerrou, então eu me uno às famílias do Manchester e subimos no nosso ônibus logo depois dos abraços de despedida das famílias do Primavera.
12:15 As mulheres do Manchester riem sobre os acontecimentos no protesto, e começam a sonhar em quantas coisas elas podem conquistar para a comunidade, discutem política, algumas em êxtase por ser seu primeiro protesto, começando a entender a força que as pessoas organizadas tem.
Quando chegamos na comunidade, após todos descerem, eu levo o Fábio para conhecer a horta comunitária que as mulheres estão construindo, e enquanto nós estamos andando em direção a ela, o Fábio me diz: “não estamos mais brincando de fazer política, as famílias dependem de nossas atitudes, dependem da gente tomar as escolhas certas. Pessoas podem passar fome se nós falharmos, todos nós… desistir não é mais uma opção” complementando uma frase que eu havia dito na conversa, e que me fez refletir sobre o assunto no resto do dia.
Eu e o Fábio militamos juntos desde 2015, e hoje com todas as experiências e erros e acertos desses últimos anos, nós estamos aqui.
12:47 Após vermos a horta, nos despedimos da Associação, subimos na moto, e vamos para o Nicéia.
13:12 Chegamos na Comunidade do Niceia, vamos até a Associação de Moradores de lá, e esperamos o Guilhermo e o Thales chegarem, pegamos a cesta com eles, e levamos a cesta até a casa da família. Leva um tempo para encontrarmos, o sol está de rachar mamonas mesmo, mas conseguimos. Mais uma missão realizada. Olha quantas pessoas se mobilizaram para essa cesta chegar na casa dessas famílias, mas chegou.
Após a entrega, subimos na moto, e vou levar o Fábio para a casa dele, no caminho vamos recordando muitas de nossas lutas nos últimos anos, então deixo ele em sua casa e volto para minha.
14:30 Chego em casa.
E nisso dá para pensar, que foi essa hora que nós paramos para descansar? Até dá, mas não, para muitos aqui na cidade como eu, o protesto do 29M começou antes, não no dia anterior quando estávamos montando os materiais, nem quando marcamos o ato, começou muito antes, estamos construindo essa luta a anos, e ela não acabou quando chegamos em casa. Na verdade, ela nunca acaba. Assim como eu, muitos desses companheiros vivem e morrem lutando por um sonho, avistando sempre no horizonte a esperança, e caminhando todos os dias em direção dela.
Os bastidores desse protesto são vários, as pessoas que constroem essa luta dia a dia são várias, e graças a vocês eu estou aqui, agradeço de verdade a todos, por poder ter tanta responsabilidade junto a vocês e fazer parte dessa grande família.
As colunas são um espaço de opinião. Posições e argumentos expressos neste espaço não necessariamente refletem o ponto de vista do Jornal Dois.