Por Joyce Rodrigues e Letícia Sartori
Desde os meados dos anos 90, a cena “faça você mesmo” bauruense se mantém na ativa. No entanto, os espaços artísticos são, em sua maioria, protagonizados por homens. Seja em shows, exposições, performances ou mesmo nos bastidores da produção cultural, a presença masculina é a norma. No entanto, um envolvimento cada vez maior de mulheres na produção artística da cidade — em especial na produção independente — tem sido notado. Ainda assim, eventos compostos majoritariamente, quando não exclusivamente, por artistas homens são comuns. Em um cenário predominantemente masculino, o questionamento permanece: onde estão as artistas da cidade?
Origem
É dentro dessa perspectiva e da necessidade de visibilidade que surge o Garotas Uivantes, evento organizado por mulheres, com mulheres e (não só) para mulheres. “O nosso lugar são todos os lugares, então a gente tem que tomar o que é nosso. Chega de depender dos caras pra fazer o nosso rolê”, comenta Amanda Rocha, fundadora do duo de pós punk La Burca e uma das idealizadoras do projeto.
Tendo como mote principal a divulgação das produções femininas de Bauru e de outras cidades, o coletivo conta com seis mulheres em sua formação atual. Além de artistas bauruenses, bandas de Belo Horizonte, São Paulo e Curitiba já passaram pela programação do evento, que soma três edições desde sua estreia, em junho deste ano.
Amanda explica as motivações que a levaram a criar o evento “Bauru tem uma carência de espaço para mulheres, sempre foi assim. Não é um problema exclusivo da cidade, mas de todo o interior paulista e, de forma geral, no Brasil todo. A repressão e a opressão que a gente sofre ao longo da vida não exclui essa cena que deveria ser a mais agregadora. O evento surgiu da necessidade da gente ter um espaço onde a gente possa se sentir segura com outras mulheres, fazendo arte para e com mulheres. É importante ter essa consciência da nossa presença e da nossa importância”.
Redes de Cultura
Projetos que tem como foco garantir o espaço da mulher como artista tem crescido cada vez mais na cena underground. Barbara Alcântara, estudante de jornalismo e membro do coletivo, acompanha essa cena desde a adolescência e cita o festival Maria Bonita Fest, que acontece em São Paulo, como uma das referências. “O festival acontece em vários lugares de São Paulo, não tem um local fixo, e é algo que a gente quer reproduzir por aqui. Você vê que em outros lugares esse movimento tá acontecendo também, o que dá um estímulo.”
Além de um espaço de fortalecimento e divulgação para as artistas de bauru e região, o evento cria a possibilidade de contato e criação de redes culturais por todo o território brasileiro. “Teve uma banda de Curitiba que esteve aqui no último evento (o duo punk Naome Rita) e elas disseram que por lá não rola esse tipo de evento. Então não é só legal pra gente daqui da cidade, mas pra elas também. Ver que existem coletivos em outros lugares que tão se organizando e surgindo. Acaba sendo um estímulo dos dois lados, tanto de dar um gás pra fazer lá quanto pra gente continuar organizando aqui.”
Embora tenha foco no cenário underground voltado para o punk e o rock de maneira geral, o evento não se restringe a esse estilo. Na última edição, o grupo de rap bauruense Ouro D’Mina foi parte da programação — o que fez com que o público se diversificasse, atraindo culturas diferentes para o mesmo ambiente. A jornalista e membro de coletivo pontua “E acho que esse é o principal caráter de resistência, quando a gente vai conversar com as pessoas é tentar não segregar. Porque eu acho que isso acontece muito. Sentia isso principalmente nos eventos em São Paulo. Quando você começa a ter um rolê mais famosinho, a galera começa a chamar sempre os mesmos artistas, ficar preso sempre no mesmo estilo. É um rolê pra minas, mas sempre para determinadas minas. Tem os eventos mas tem as pessoas específicas que vão estar naqueles eventos. E aí o que a gente tenta fazer é mudar isso. Chego numas minas que eu nunca vi na vida e pergunto, porque vejo que tem uns trampos legais”.
Bárbara continua “Tinha uma galera muito diferente (dos primeiros eventos) e todo mundo curtiu muito. Foi muito importante, juntar todo mundo e virou um bagulho muito foda. Porque foi logo antes das eleições, todo mundo gritando “ELE NÃO”, aquele negócio de saber que a gente é resistência e todo mundo junto, sem esse negócio de grupinho, de estar fazendo por status. É pra ter visibilidade mesmo, todo mundo fazendo mesmo.”
Espaços de segurança e visibilidade
O machismo dentro da cena musical é histórico, originário de uma construção social que reverbera em diferentes contextos — e é claro que com a música não seria diferente. Como compositora e instrumentista, Amanda reforça a importância de unificar mulheres dentro da música. “Hoje dou preferência pra tocar com mulheres. Já toquei com caras, mas com mulher é diferente. Nós sabemos ouvir umas às outras, entendemos nosso universo, nossas demandas, nosso emocional. Existe uma empatia muito maior. Já toquei com caras que não se importavam se estavam com um instrumento mais alto, ou que só se importavam com o próprio instrumento”.
Bárbara reforça o mesmo ponto: “Um cara tem muito mais segurança pra tocar. Ele pode subir no palco sem nem afinar o instrumento direito, e isso é bem aceito. Eles tem mais segurança para se expor. Nós estamos ali incentivando a arte e cultura independente, fortalecendo as minas, incentivando a deixar a insegurança de lado e ir lá expor e tocar mesmo.”
Dentro dos planos futuros do coletivo está a criação de espaços de discussão dentro dos eventos, ou como Barbara coloca, “troca de experiência de um jeito positivo”. As rodas de conversa terão temas voltados a experiência das mulheres no cenário musical e artístico. “E não só quem toca mas quem vai no rolê também. Saber se as mulheres se sentem confortáveis, porque várias mulheres tem o mesmo problema. E aí quando você conversa sobre isso, seja no rap, no indie, no punk, você vai ver as mesmas coisas. As minas sendo excluídas do mesmo jeito.” E completa: “Pô às vezes a menina deixa de ir num evento por conta de um cara babaca que vai estar lá. E as pessoas não vão deixar de chamar esses caras, a gente já viu. Então vamos criar o nosso e pronto”.
E a grana?
Tirar do próprio bolso é uma prática comum para os que se arriscam a movimentar a cultura da cidade. É uma consequência direta da falta de incentivo fiscal para a realização de eventos culturais. Como a maioria das organizações independentes, o coletivo conta com a cobrança da portaria (o preço varia entre 10 e 15 reais) e a venda de outros itens para arrecadar dinheiro para o coletivo. “A gente pede o dinheiro da entrada mas é pra poder pagar as bandas. A gente quer pro coletivo também, pra continuar produzindo o evento. Da última vez a gente conseguiu só pagar a passagem da banda de Curitiba.”
E completa “A gente fez comida e adesivo para vender pra ter uma fonte de renda e ajudar as meninas também. Porque não é legal ficar chamando e só pagar a passagem. A gente quer chamar e poder dar uma grana, porque a gente sabe que é foda. Tem muita gente que depende disso pra viver.”
Contato
Os eventos do Coletivo Garotas Uivantes acontecem bimestralmente na Casa Orates, na avenida Duque de Caxias 10–26. Para mais informações, acompanhe as páginas das redes sociais do coletivo
FB: Garotas Uivantes
Instagram: @garotasuivantesfest