“Nesse momento gostaria de ficar afastada e viva”, diz servidora
Servidores municipais do grupo de risco contam suas rotinas após serem convocados pela Prefeitura de Bauru para trabalhar durante pandemia
Publicado em 7 de maio de 2020
Por Camila Araujo
Servidores públicos municipais do grupo de risco da covid-19 continuam trabalhando em Bauru durante a pandemia do novo coronavírus. Os relatos feitos para a reportagem partem de funcionários das Secretaria Municipais de Obras e da Educação.
Em nota, a Prefeitura de Bauru informou ao J2 que pouco mais de 10% dos 6.452 servidores na ativa são funcionários do grupo de risco. A conta dá 685 pessoas que poderiam ser afastadas de suas funções. O número de servidores com idade igual ou superior a 60 anos é de 467.
O grupo de risco da covid-19 é formado por pessoas com doenças crônicas como diabetes e hipertensão, doenças no coração e asma ou comorbidades (quando ocorre uma associação de doenças). Fumantes e indivíduos acima de 60 anos também estão no grupo de risco e têm mais chances de morrer por complicações da doença.
“Não tem o que fazer na escola”
Uma circular publicada no dia 9 de abril pela Secretaria da Educação de Bauru convocava os funcionários do setor – auxiliares de creche, cuidadores, serventes, merendeiras – a retornarem à função, mesmo com as escolas fechadas. No dia 15, um decreto publicado no Diário Oficial revogou a circular e suspendeu o ano letivo de 2020 enquanto perdurasse a quarentena na cidade.
Já no dia 22 de abril, um novo decreto municipal convocou a equipe de apoio escolar. De dois a três servidores por escola cumprem uma jornada das 8h às 14h, todos os dias da semana, “devendo manter a limpeza e organização essencial da unidade”, de acordo com a determinação. O mesmo decreto definia a retomada do período letivo, à distância, a partir do dia seguinte, 23.
“Não tem nada pra eu fazer na escola”, desabafa uma servidora municipal, auxiliar de creche, que prefere não ser identificada. Ela e seus colegas de trabalho estão atuando em sistema de escala, cumprindo o horário de trabalho na instituição, porém sem ter o que fazer no local.
A notícia do retorno ao trabalho foi anunciada para a funcionária por meio de um áudio em um grupo de WhatsApp com informações da chefe do departamento de Educação Infantil, Anne Simone, no dia 24 de abril. O áudio foi enviado para a reportagem pela funcionária que quis compartilhar seu relato.
No áudio, a chefe departamental explica que os funcionários do grupo de risco deveriam entregar um documento para a diretora comprovando a comorbidade, que seria repassado posteriormente para a secretaria, para dar entrada no pedido de licença prêmio. Essas informações foram retiradas de uma circular de convocação da Secretaria Municipal de Educação.
“Sou do grupo de risco, tenho um atestado em mãos. Por que querer usar minha licença prêmio?”, questiona a servidora. Ela explica que não irá usar sua licença, conquistada por direito, e que retorna ao trabalho no dia 7 de maio. “Nesse momento gostaria de ficar afastada e tentar ficar viva”, desabafa.
A licença prêmio é um direto dos servidores públicos que define a retirada de uma licença de até três meses após cada período de cinco anos ininterruptos em serviço e sem faltas injustificadas.
Mais letal nos idosos
A respeito da situação dos servidores com mais de 60 anos, Anne Simone informa: “se este servidor vai trabalhar num local ventilado e sem aglomeração de pessoas, ele pode retornar ao trabalho. Ele não precisa solicitar as férias ou a licença prêmio”.
Mesmo em condições favoráveis à prevenção no trabalho, a contaminação pelo vírus pode se dar no percurso ao sair de casa. A Organização Mundial de Saúde (OMS) e o Ministério da Saúde constataram desdo o início da pandemia que os idosos são os mais suscetíveis e mais afetados pelos índices de letalidade da covid-19.
Segundo dados do Centro para a Prevenção e Combate a Doenças da China, idosos entre 60 a 69 anos apresentam um índice de letalidade entre 3,6%. Entre os idosos de 70 e 79 anos, a letalidade aumenta para 8%, e acima de 80 anos, esse índice gira em torno de 14,8%. Em Bauru, 6 das 7 mortes confirmadas por covid-19 até o momento foram de idosos.
Em relação aos equipamentos de proteção individual na creche em que a servidora atua, ela diz que foram entregues duas máscaras de tecido para cada trabalhador. “O ano inteiro não temos nem luva pra trocar as fraldas das crianças e mexer com sangue quando se machucam”, pontua. Ela explica que em outros contextos, a diretora da creche tem que comprar os materiais básicos de higiene com o dinheiro da Associação Pais e Mestres (APM). “E só compra porque exigimos”. A APM mantém um fundo de contribuição dos pais para as despesas que a prefeitura não cobre.
No dia 5 de maio, um novo decreto publicado no Diário Oficial regulamentou um banco de horas para os funcionários que não possuem férias ou licença prêmio e que precisam ficar afastados do trabalho presencial durante a pandemia. Esse banco de horas deverá ser pago em até 12 meses.
Tapar buracos na pandemia
Na secretaria de Obras, a situação é parecida. O relato de um servidor público que trabalha no setor de pavimentação informa que os funcionários foram convocados de volta ao trabalho no dia 22 de abril.
Entre os convocados, estavam pessoas que fazem parte do grupo de risco e idosos acima de 60 anos. É o caso que chegou para a reportagem do Jornal Dois: um servidor idoso, com problemas respiratórios crônicos, e que continua saindo de casa para trabalhar.
A princípio, de acordo com o relato, não foi oferecido direito a licença prêmio ou férias antecipadas aos trabalhadores, e só depois que eles já estavam trabalhando surgiu essa possibilidade.
“Eles estão alegando que os funcionários acima de 60 anos não quiseram tirar férias, ou licença prêmio. Porém se o funcionário quer ou não tirar, não interessa. Pessoas do grupo de risco acima de 60 anos não têm que estar trabalhando na rua”, pontua familiar do servidor, que também terá sua identidade preservada.
A Prefeitura de Bauru afirma que apenas os serviços essenciais tiveram convocação de retorno ao trabalho, ressaltando que todas as medidas de segurança com a saúde do servidor foram tomadas.
Conforme o Decreto nº 14.679, publicado no dia 24 de março, cabe a cada secretário decidir sobre quais atividades são essenciais no âmbito de sua pasta.
Para a parente do servidor da Secretaria de Obras, “tapar buracos numa pandemia não é serviço essencial”. No setor de pavimentação da prefeitura trabalham 13 pessoas acima dos 60 anos.
“Perversidade política”
“O grupo de risco no Brasil é muito afetado pelas desigualdades sociais, econômicas, culturais e políticas”, comenta Juarez Xavier, professor da Unesp de Bauru e pesquisador do Núcleo Negro UNESP para a Pesquisa e Extensão (NUPE). Segundo ele, essas particularidades exigem um cuidado especial por parte da gestão pública, pensando em políticas complementares para assegurar que as recomendações da OMS sejam aplicadas.
“Expor as pessoas a uma situação de risco compete uma perversidade política”, avalia, assinalando que só é possível relaxar as políticas de isolamento quando as condições materiais de segurança contra a contaminação do vírus estiverem asseguradas, algo que ainda não ocorre no município.
Juarez lembra Achillle Mbembe, autor camaronês que cunhou o conceito de “necropolítica” – política de genocídio de um estado contra a própria população.
“As opções de políticas públicas que estão sendo adotadas podem ser observadas a partir de mecanismos da chamada necropolítica. Todas as decisões que você toma durante a pandemia podem decidir quem vive e quem morre”.
É também uma visão presente na interpretação da familiar do servidor acima de 60 anos, que ainda está trabalhando nas obras da cidade. “Para a prefeitura de Bauru, um buraco no asfalto é mais importante do que a vida de um servidor. É a economia acima das vidas”, resume.
“Ele deu entrada na licença prêmio, que só vai sair em 10, 15 dias, enquanto isso ele continua trabalhando. Isso é criminoso, é perverso”.
Lá em março, os dados do Laboratório de Geografia da Unesp em Presidente Prudente apontavam que cidades como Bauru, Araraquara, São José do Rio Preto e Ribeirão Preto estavam “atrasadas” em três semanas quando comparadas aos números de contaminação da covid-19 na Região Metropolitana de São Paulo. Por isso, as cidades do interior estão sob risco de um novo pico de contaminação caso o isolamento seja relaxado.
A Secretaria Municipal de Educação não se pronunciou sobre o caso até o momento de publicação da matéria. Houve a tentativa de contato com a Secretaria Municipal de Obras, sem respostas.