“Não tava nem sabendo”: o ensino à distância de Dória para quem não tem internet, nem celular
Governo de São Paulo oferece conteúdo gratuito pela televisão e aplicativo de celular durante isolamento do coronavírus; sem acesso à tecnologia e sem aulas desde março, Lucicléia e a irmã Gabriela não sabiam do EAD até esta reportagem chegar à sua porta – e agora, receiam não conseguir acompanhar suas turmas
Publicado em 23 de abril de 2020
Por Bibiana Garrido e Victor Oliveira
Lucicléia e Gabriela Silva são irmãs e alunas do 3° ano do colegial e 8° ano do fundamental na Escola Estadual Vereador Antônio Ferreira de Menezes, o Ferreira, em Bauru. Sem aulas desde a terceira semana de março, quando foi anunciada a quarentena para combater o coronavírus no estado de São Paulo, elas não sabiam que o governo daria aulas pela televisão e celular.
O ensino à distância foi anunciado pelo Governo do Estado de São Paulo como medida para que os alunos da rede estadual não ficassem sem conteúdo durante o período de distanciamento social. Por meio do aplicativo Centro de Mídias SP, que pode ser acessado por celulares Android e IOS, os alunos terão acesso à aulas ao vivo e material pedagógico. O conteúdo também será transmitido pela televisão, no canal TV Cultura.
Desde o dia 6 de abril o aplicativo está no ar para testes – alguns conteúdos já estão lá, nos respectivos canais de cada ano e série. Hoje, 22 de abril, começam as aulas que contarão como dias letivos, ou seja, contarão presença dos alunos.
As irmãs não sabem se vão conseguir assistir às matérias todos os dias.
Quando a gente ia para a escola
Sentadas no sofá dentro da casa de compensado e telha eternit, no assentamento Primavera, Lucicléia e Gabriela relembram a rotina comum antes da pandemia. Acordar às 6h da manhã, se arrumar, sair para chegar a tempo do sinal e não ficar de fora. A escola fica a vinte minutos a pé de onde moram.
O assentamento Primavera está na região norte da cidade, no Parque Primavera. Parte das 150 famílias que vivem ali já passou por três reintegrações de posse em outros acampamentos na periferia da cidade, como Estrela de Davi, Morada da Lua e Nova Canaã.
As irmãs voltavam da escola para casa na hora do almoço. Lucicléia seguia para seu estágio no Fórum e Gabriela ficava em casa. Hoje, durante o isolamento social, as duas estão sem ter o que fazer.
Dois celulares em casa, um deles com internet 3G – aparelhos da mãe e do padrasto. Televisão aberta que pega alguns canais. “A gente não tava nem sabendo”, conta Lucicléia, sobre o ensino à distância do governo João Doria (PSDB). “Uma amiga da escola perguntou se eu tava fazendo as aulas no Facebook e eu falei que não”.
A iniciativa dos professores de Lucicléia e Gabriela na página da escola no Facebook é algo à parte e anterior à plataforma que o governo estadual desenvolveu para o EAD pelo celular.
“Como a gente não tem acesso à internet, dificulta muito”, diz Lucicléia. “A escola já postou atividades, mas a gente não tem como entrar pelo celular, pelo computador, nada, porque a gente não tem nem a internet e nem o aparelho pra acessar”.
Na terça (21), a escola Ferreira de Menezes anunciou em sua página o início das aulas pelo aplicativo Centro de Mídias SP a partir do dia 27 de abril. “Todos os alunos deverão baixar este aplicativo, mesmo sem crédito/bônus em seus celulares será possível usá-lo. As presenças serão computadas por meio de suas conexões”, publicou a escola.
A possibilidade de acesso ao aplicativo sem internet é garantida pelo governo Dória e reafirmada pelos professores do Ferreira no comunicado aos alunos. Mas não é o que aconteceu quando Lucicléia e Gabriela tentaram fazer o download sem internet, no celular da mãe.
“Sem internet não vai, tenta rotear o 3G pra ver se baixa”, sugere Gabriela depois das tentativas sem sucesso. Com o celular conectado à rede 3G, as irmãs conseguiram baixar e entrar no aplicativo.
No site do CMSP, o governo informa que não é possível baixar o app sem internet. Depois de feito o download, a Secretaria de Educação fornece internet para o uso dos alunos. “A Secretaria da Educação do Estado de São Paulo irá disponibilizar internet gratuita para os alunos utilizarem o aplicativo. Basta ter um dispositivo com sistema operacional Android ou iOS com um chip de qualquer operadora”, comunica o órgão.
Depois de caçar seu RA e senha pela casa, dados necessários para fazer o login no app, Lucicléia chegou à tela do 3° ano do Ensino Médio. As aulas para o terceirão no CMSP serão das 17h45 às 18h30, de segunda à sexta.
Lucicléia e Gabriela não sabem se vão conseguir entrar no aplicativo para assistir às aulas. “Pela TV seria até mais fácil. Se for pra fazer aula todos os dias, só fica um celular aqui em casa que é o da minha mãe, porque meu padrasto vai trabalhar e o dele que tem internet”, diz a mais velha. “Era melhor antecipar as férias porque muita gente não tem como fazer, não tem como acessar”.
A desigualdade entre 33 mil alunos
São cerca de 33 mil estudantes da rede estadual em Bauru, segundo dados de 2019 divulgados pela Secretaria de Educação do Estado de São Paulo. Distribuídos entre as 54 escolas da rede no município, esses alunos e alunas, como Lucicléia e Gabriela, podem não ter as mesmas condições de acesso para participar do ensino à distância durante a covid-19.
“Nossa avaliação é de que a proposta do governo tem dois aspectos problemáticos”, pontua Marcos Chagas, diretor da Apeoesp em Bauru, que é o Sindicato dos Professores do Ensino Oficial do Estado de São Paulo. “As garantias dos direitos dos alunos em relação à igualdade de acesso para todos; e a garantia do Estado à respeito da qualidade do ensino. Por isso, a Apeoesp se posiciona contra a adoção desta medida”.
O professor ressalta a importância do ensino nas escolas: “A educação não é transmissão de conhecimento, ela é um processo de produção que envolve convivência e troca. As atividades produzidas nas escolas, o questionamento, isso faz parte da formação. Reduzir tudo à transmissão de conteúdo apenas, é empobrecer bastante a educação”.
Professor de Filosofia, Lucas Maldonado integra o coletivo de professores Chão de Giz. Para ele, o EAD também está em xeque. “A qualidade do ensino não é possível de ser garantida por conta da falta de ambientes adequados para aprender. Isso contribui para o aumento da desigualdade, e os estudantes que não tiverem acesso vão ficar para trás”, preocupa-se.
Além das condições de desigualdade, Marcos pontua que é preciso considerar a pandemia que o mundo vive hoje. “Nessa fase tão difícil, não deveria ser o foco colocar mais uma obrigação para esses alunos, que podem ter situações de risco nas suas famílias. A educação à distância não vem a oferecer muito nesse momento”.
A resposta do Estado
Em coletiva de imprensa, o governador João Doria defendeu que os alunos que não conseguissem acessar as aulas pelo celular teriam acompanhamento no retorno às escolas pós-pandemia. A Secretaria Estadual de Educação informou ao Jornal Dois que na volta às aulas será feita uma prova de nível com os estudantes, e a partir desse resultado serão identificados os jovens e crianças que precisarão do reforço.
Os professores se preocupam com as condições de trabalho e estabilidade na rede pública de ensino. “A gente vai ter que usar os nossos próprios materiais, que são de uso pessoal, sendo que esses deveriam ser garantidos pelo Estado. Também não sabemos como vai ser o pagamento”, indaga o professor de Filosofia. “O ensino público vai ficar defasado por conta disso, e pode até servir de justificativa para uma possível privatização e precarização”, alerta Lucas.
Ao J2, a Secretaria de Educação do Estado de São Paulo afirma que a remuneração dos professores permanecerá a mesma durante o período. No site do CMSP há uma lista de perguntas e respostas frequentes sobre o EAD em meio ao coronavírus.
E o recesso na rede municipal
Tomando como referência o mês de fevereiro de 2020, as escolas municipais de Bauru somam 9,2 mil alunos. Os dados são do relatório do Departamento de Ensino Fundamental.
O último dia de aula na rede foi em 20 de março, respeitando o início da quarentena no município. As escolas, segundo informa a Secretaria Municipal de Educação, optaram por antecipar todos os recessos do meio e final do ano – que seriam em julho e dezembro.
“Caso avalie como necessária, posteriormente podemos fazer valer a educação remota”, diz a secretaria à reportagem. “Nossa equipe técnica vem estudando e planejando uma forma de atender, com o maior alcance possível, os alunos matriculados no sistema de ensino”.
Algumas escolas municipais têm postado em atividades suas redes, com links de conteúdos escolares e/ou culturais, vídeos de brincadeiras e contação de histórias realizadas pelos professores. “Trata-se de uma ação voluntária, com o objetivo de manter o vínculo e interação entre alunos, famílias e escolas”, informa a Secretaria Municipal.
Bauru também distribuiu kits de alimentos que seriam usados nas merendas para as famílias cadastradas no Bolsa Família e com filhos regularmente matriculados nas escolas municipais. Nas estaduais, o programa “Merenda em Casa” tem a mesma finalidade.
Luciene Silva, mãe de Lucicléia e Gabriela, não contou com o auxílio da merenda por que já recebe aposentadoria. “Eles passaram aqui pra algumas pessoas”, diz ela, se referindo ao pessoal do assentamento, “mas a gente não. Agora como é que sustenta todo mundo com mil reais por mês?”.