Todo mundo fala dos ferroviários. E as ferroviárias de Bauru?
Conheça a história das mulheres que, no século passado, enfrentaram o tabu e o machismo para marcar presença na profissão fundante da cidade
Reportagem publicada em 26 de março de 2020
Por Ana Carolina Moraes
Das 76 fotos na categoria “Trabalhadores”, no acervo digital do Museu Ferroviário, não existe registro das mulheres que trabalham na ferrovia. Os poucos retratos femininos são de boias-frias na colheita da cana, atividade da agricultura. Na busca pela palavra “mulher” dentro do sistema digitalizado do museu, tampouco surgem indícios sobre as ferroviárias de Bauru – os resultados limitam-se às mulheres indígenas Kaingangs.
Para quem conhece a história das ferrovias em Bauru por meio do museu, é como se as mulheres ferroviárias não tivessem existido.
A estrutura precária para os registros e cultura da época ajudam a compreender este apagamento. Por isso é que vamos contar quem eram Flordaliza e Maria Inês neste contexto.
O ano é 1918 e a primeira mulher contratada na Noroeste do Brasil é Flordaliza Meira Monte, de 16 anos. Ela entrou na vaga deixada pelo pai, que trabalhava com telégrafo, e tornou-se escriturária – ficandona empresa até 1942. A história de Flordaliza foi resgata pela historiadora Lidia Maria Vianna Possas, no livro ‘Mulheres, Trens e Trilhos’. A publicação, de 2001, resulta das pesquisas de Possas sobre a participação das mulheres no trabalho na ferrovia.
Segundo os estudos de Possas, as mulheres correspondiam a 1,7% dos 14 mil prontuários de ferroviários analisados. Os documentos dos funcionários da Noroeste do Brasil foram reunidos entre os anos de 1918 e 1945. Elas tinham entre 15 e 30 anos de idade, vinham de diferentes cidades do interior e atuavam nas partes administrativa, de atendimento ao público ou na limpeza.
Em entrevista para a revista Pesquisa Fapesp em 2002, Lidia Possas comentou que ignorar a contribuição das mulheres na ferrovia é desconsiderar as mudanças sociais causadas para a época. “A história oficial retrata de maneira repetitiva a ferrovia como instrumento vigoroso do progresso, da luta de classes e não como agente provocador de mudanças de comportamento e valores”, pontua.
Ao optar pelo trabalho na ferrovia na primeira metade do século XX, elas rompiam com o estigma de mulheres “do lar” e passavam ser consideradas como “mulheres públicas”.
Para fugir do assédios, a maioria permanecia solteira e sem filhos. À época, a participação feminina no trabalho era considerada “ideal” por ser disponível e de pouco custo, como pontuado pela pesquisadora Iana dos Santos Vasconcelos.
O Brasil tinha adotado a política de imigração para substituir a mão-de-obra escravizada tanto nas lavouras quanto nas fábricas. No artigo “Mulher e Mercado de trabalho no Brasil: notas de uma história em andamento”, Vasconcelos explica que “a inserção das mulheres no mercado de trabalho no Brasil nesse período não significou a conquista de espaço entre homens e mulheres”, mas sim uma “reserva de mão de obra”.
Nos estudos de Possas, essa percepção sobre o trabalho das mulheres melhora com a adoção de concursos públicos para contratação de novos funcionários. Nesse momento, trabalhar na ferrovia sinônimo de estabilidade profissional.
Quem conta essa parte da história é Maria Inês Posso, 67, ferroviária aposentada. Ela entrou na Rede Ferroviária Federal S/A em novembro 1978 e permaneceu até agosto de 2001. Durante quase 23 anos, Posso atuou na bilheteria, no Departamento de Transporte, e também assumiu cargos nas áreas administrativa e jurídicas da ferrovia. Na época em que foi admitida, Maria Inês relembra que foram contratadas 22 mulheres de uma vez. “Sempre trabalhei com mulher, era uma relação gostosa”, comenta.
Um dos cargos administrativos de Posso foi de supervisora. Ela era responsável por uma equipe composta por quatro meninas e três rapazes. Mas a chefia era masculina: “Quando eu fui para o Departamento de Planejamento eu fui como supervisora, eu monitorava um departamento e tinha o meu chefe, que era um homem.”
De acordo com Posso, 80% dos cargos da empresa eram ocupados por homens. A ferroviária conta que a maioria dos trabalhos eram serviços braçais, então, atividades como agente de estação, manutenção, auxiliar de serviços gerais, mecânico, laboratório, pesquisa e análise de óleo eram realizadas exclusivamente por homens. Já às mulheres, cabiam as funções administrativas como supervisoras, assistentes sociais, psicólogas e médicas, por exemplo.
Sobre preconceito, Maria Inês lembra que as manifestações ocorriam no sentido de desafiar a capacidade de as mulheres realizarem as atividades. “Ah, mas será que você faz isso? Será que você consegue fazer aquilo? E a gente [mulher] fazia e saia o serviço melhor do que o deles”, revela. Apesar dessas situações corriqueiras, Posso afirmou que sempre houve respeito no ambiente de trabalho.
“Eu sempre fui uma pessoa que era pau pra toda obra. Eu desmontava, às vezes, uma máquina de escrever para limpar, lubrificar; assim ela ficava mais macias para datilografar”.
Das lembranças desse período, Maria Inês conta sobre o movimento na Praça Machado de Mello e na Batista de Carvalho. “O trem chegava 13h05, 13h10; todo mundo vinha de Campo Grande (MS), Araçatuba (SP), o pessoal da Bolívia. Eles desciam em Bauru para pegar outro trem até São Paulo. Era um agito, mas um agito muito grande e muito gostoso. Quando eu trabalhava no transporte, gostava de ir à plataforma e esperar o trem chegar pra ver chegar o pessoal de todos os tipos”.
A ferrovia foi privatizada em meados da década de 1990 e os trens de passageiros deixaram de circular. Nos anos 2000, a malha ferroviária foi abandonada e, do prédio da Estação Ferroviária, sobrou a história. O auge da economia de Bauru também foi um momento marcante na vida das ferroviárias. Nas palavras de Maria Inês, “era um trabalho gostoso, tinha muita coisa para fazer, mas era muito gostoso”.
Hoje a memória da ferrovia está preservada no Museu Ferroviário de Bauru, nas inúmeras pesquisas sobre a Estação e em livros como o de Lídia Possas. O resgate da história das mulheres ferroviárias é uma forma de zelar pelo legado da ferrovia na sociedade bauruense.