Por trás do desfile: samba, suor e labuta no carnaval bauruense
Folia já foi considerada a melhor do estado; hoje agremiações enfrentam dificuldades para entrar na avenida
Por Bibiana Garrido e Lucas Zanetti
Quatro dias antes de entrar na avenida, dona Olívia Arantes de Souza mal voltou do Ambulatório Médico de Especialidades (AME) e foi direto para uma reunião com a diretoria da Coroa Imperial, escola na qual é presidente. De lá, veio receber nossa equipe com um sorriso no rosto, e dando a letra: “eu acho que amanhã ou depois ninguém mais vai ter condição de bancar o carnaval não”.
A casa no Geisel fica a poucos metros do barracão da Coroa e é bastante frequentada pelos moradores, especialmente por aqueles que fazem parte da escola. Logo na entrada, em meio ao entra e sai de pessoas, é possível ver cadeiras de balanço e vários materiais para fantasias e alegorias e uma variedade de plantas como arruda, espada de são jorge e boldo.
Do alto dos seus oitenta e poucos anos, a mulher coordena funções de outras pessoas que aparecem de vez em quando na porta da sala, ou no portão que dá para a rua, enquanto conversa com a gente. “Antes todo mundo saía numa escola que trabalhava por amor, ninguém levava nada”, diz Olívia. Nessa hora o sol da tarde já entrava na varanda da casa. “Mas hoje, quando fala em carnaval, vem gente de tudo que é lado. Cê acredita que veio batuqueiro aqui pedir pra tocar na escola e queria 1200 reais? Já parou pra pensar?”.
Na conversa, não ficam de fora as dificuldades financeiras que escolas e blocos tem de contornar para fazer um carnaval. Em 2018, a verba saiu em cima da hora e apertou a programação.
Faz décadas que a agitação pré-carnaval é rotina para Olívia e João Medeiros, o Joãozinho, diretor da escola. Ele ajusta alguns acessórios das fantasias enquanto nos conta que todo ano marca as férias do serviço para fevereiro. Caminhoneiro, deixa as estradas para poder trabalhar na Coroa Imperial, escola fundada há 32 anos.
Pela rua, vemos partes de carros alegóricos por montar, surdos e caixas, componentes da bateria que logo iria entrar em cena. O asfalto e as calçadas que hoje servem de oficina já foram palco principal dos desfiles na cidade.
Da rua Primeiro de Agosto, lá pelas décadas de 1950, 1960, os primeiros desfiles passaram para a Rui Barbosa, depois para as avenidas Rodrigues Alves e Nações Unidas. Representantes de grandes clubes da cidade saíam em carros alegóricos em paradas que, mais tarde, também contariam com a participação de escolas e blocos dos bairros.
Antes que as agremiações populares pudessem se fortalecer, as matinês e festas nos clubes eram o destaque do carnaval em Bauru. Surgem as primeiras escolas e blocos nos anos 1970, vinte anos antes da construção do sambódromo. “O carnaval começou a evoluir a partir do momento em que o Cartola e o Camisa 10 montaram os blocos. A única escola que saia como escola era a Mocidade. Foram um ou dois anos mais ou menos assim. Depois, Cartola e Camisa passaram a ser escolas”, conta José Carlos Zotino.
Seu Zotino é outro personagem do carnaval que tem histórias pra contar. A casa no Bela Vista não se diferencia muito da de dona Olívia: plantas e cadeiras na varanda e movimento de pessoas. Ao nos receber seu Zotino coloca pra tocar o seu novo trabalho musical, o Batuke Eletrônico, que mistura o samba com os grandes sucessos do pop internacional.
“O carnaval tem um enredo, que é uma história contada ao longo da avenida. É uma grande ópera que vai passando. Você vai vendo coisa por coisa acontecer. O carnaval é um teatro, é arte. Você envolve músico, compositor, desenhista, o cara que desfila, todos estão pondo sua arte. O carnaval é um dos maiores movimentos artísticos em termos de conjunto”, define. A convicção ao falar de carnaval, é resultado de muitos anos de atuação no carnaval bauruense.
Zotino fez parte do Camisa 10 e em 1980, foi fundador da escola de samba Imperatriz da Grande Bauru, que chegou a ser campeã e vice, porém extinta em 1984. Em 2013, a escola retornou como convidada. Devido a problemas com o regulamento, em 2014 desfilaria com um terço da verbas das outras escolas. A desistência dos membros da agremiação e um problema que teve em sua casa com a chuva — quando as fantasias foram molhadas — impediram a escola de entrar na avenida.
“Não tinha como recuperar. Pedi licença para não desfilar, embalei e não fui. Ninguém veio aqui me ajudar. Eu ficava a noite inteira fazendo alegoria sozinho, depois tinha que correr atrás de bateria”, lembra. “É uma pena, porque a gente tem um conhecimento muito grande que vai morrer”.
Quem também entrou no embalo das escolas de samba nessa época foi Roque Ferreira, conhecido por ter ocupado na Câmara Municipal o posto de vereador (2009–2016). Em 1984, ainda a traçar caminhos que o levariam ao plenário, integrou o grupo de fundadores da Império da Vila Nova Esperança e lá foi diretor por 15 anos.
“Mas o que é escola de samba, né? Nós chegamos a conclusão que só fazia sentido fundar uma escola de samba se ela tivesse integrada à vida cotidiana da comunidade. A Império tinha uma cara e uma voz”, lembra Roque, em referência a Claudinho, que era destaque como intérprete da escola nos desfiles. “Sempre que você tem um ideal e uma luta, as pessoas vão te adjetivando”.
A Império da Vila Nova Esperança trazia enredos que falavam sobre uma Bauru excludente, sobre questões econômicas do país e sobre o racismo, como comenta Roque. “As escolas às vezes gastam muito dinheiro pra fazer alegorias monstruosas e esquecem do básico”, reflete Roque, para quem os sambas-enredo deveriam ser mais criativos e com discussão de temas atuais.
O ex-diretor da Império vê no carnaval de Bauru o surgimento dos “imigrantes de escola”, que seriam pessoas de classe média-alta sem preferência ou “escola do coração”. Pessoas que não fazem parte da comunidade criada em torno das agremiações e que mudam, a cada ano, de escola ou bloco em que vão desfilar no sambódromo. “É de acordo com quem ganha”.
Para Zotino, a decadência do carnaval começa quando os jovens perdem a identidade com as escolas e blocos dos bairros e acabam “migrando para outros gêneros”. Ele acredita que é preciso “agregar a molecada para pegar amor, se não daqui cinco anos não tem mais carnaval em Bauru”.
A saudade parece algo em comum entre as pessoas “das antigas” do carnaval bauruense e esse sentimento tem seus motivos: a festa da nossa cidade já foi considerada a melhor do interior paulista. O sambódromo construído em 1991, por exemplo, é conhecido por ser o primeiro do Estado de São Paulo.
“Os hotéis eram todos lotados, os camarotes davam briga para assistir o carnaval. Havia geração de emprego e valores que retornavam para prefeitura, pois todos pagavam impostos”, conta Zotino. Ele lembra de uma pesquisa feita na época que revelou a diferença da arrecadação de impostos pela prefeitura no período do carnaval: era o equivalente a três meses comuns.
Essa grandeza do carnaval bauruense foi registrada em forma de documentário. “Carnaval em Bauru: quem te viu, quem te vê” é um Trabalho de Conclusão de Curso de Jornalismo de Fernando Barreto e Jefferson Atayde, feito em 2009. Com imagens históricas e entrevistas com personagens do carnaval, o trabalho resgata um período importante da vida de bauruenses que não pode ser esquecido.
Hoje, as incertezas sobre a continuidade da folia preocupam algumas agremiações. É o caso de todas as pessoas consultadas para essa reportagem. Falta de apoio da prefeitura, a perda da tradição carnavalesca devido ao hiato de dez anos (2001–2011) sem desfiles no sambódromo e o desinteresse de muitos que construíam o carnaval no passado, são apontadas como principais causas para os problemas enfrentados pelas agremiações.
Nesse tempo que o sambódromo ficou fechado para o carnaval, as escolas e blocos fechavam então as ruas e as avenidas de seus bairros para desfilar por ali mesmo. O retorno para o sambódromo aconteceu “com muita dificuldade”, aponta dona Olívia, e segue “até hoje com muita dificuldade”.
Para João, diretor da Coroa Imperial, não é só a qualidade do desfile que preocupa, mas sim a tradição do carnaval e a cultura que ele representa. “Antes era mais artesanal, manual. Hoje não, é tudo mecânico. Essa turma que tem um cacife um pouco a mais vai lá pro Rio de Janeiro, pra São Paulo e compra tudo lá, não quer mais saber de fazer na mão”, afirma.
Giedry Pires, presidente do bloco Esquadra da Indepa, argumenta que antigamente era mais fácil fazer carnaval em Bauru porque “a verba saía antes e saía toda. Agora a gente recebe 40% a três dias do carnaval e o restante só 10, 20 dias depois do carnaval”. Ela, carnavalesca “desde a barriga da mãe”, estava presente em 2014 quando o Indepa foi criado, embaixo de uma árvore em frente ao lugar onde hoje fica o barracão da bloco.
A presidente cobra maior interesse da prefeitura pelo carnaval e também defende a criação de uma Liga entre as escolas de sambas e blocos. Pensamento que é reforçado por dona Olívia: “essa Liga deveria tomar conta do sambódromo e fazer eventos das escolas lá. Todos tem que falar a mesma linguagem, com um único objetivo”.
Para as pessoas que trabalham com o carnaval, a realização de eventos no sambódromo em outros meses do ano ajudaria na arrecadação de fundos para as agremiações. Segundo Roque, “o sambódromo foi construído de maneira isolada, para uso restrito e não para uso integrado da população”.
Na visão da presidente da Coroa Imperial, as escolas poderiam organizar seus eventos e juntar dinheiro durante o ano para fazer o carnaval do próximo — o que melhoraria a questão das dívidas e também iria movimentar a economia, por conta das barracas e vendas na praça de alimentação.
“Os sambistas tem que se fazer respeitar, o que não pode ocorrer é o sambista pagar pra escola desfilar”, afirma Roque, que também é a favor da reformulação do carnaval em Bauru e menciona até mesmo a possibilidade de se cobrar um tipo de ingresso popular no sambódromo: “todo carnaval tem um custo”.
Com cinco escolas e nove blocos desfilando, o carnaval bauruense ainda anima muita gente em 2018. “Vale a pena porque se não o sambódromo não lotava pra ver o desfile. O duro é trabalhar o ano inteiro e ter uma hora e meia pra mostrar o que você fez”, comenta João. “Gratificante é o final, quando você vê a escola! A sua melhor felicidade é ver a escola entrando na avenida e a felicidade maior é ver ela chegando lá embaixo. É sinal de missão cumprida”, completa o diretor da Coroa Imperial.
Desfiles à parte, a movimentação da cultura, a criação e manutenção de laços entre as pessoas, contribuem para o fortalecimento da identidade nos bairros e comunidades. “O pessoal confunde o desfile com o que de fato é uma escola de samba. Não é um negócio, apesar de ter se tornado”, pontua Roque.
A diferença dos orçamentos e porte das escolas e blocos é considerada por Olívia, João e Roque como se existissem dois tipos de agremiação em Bauru: as “escolas-empresa”, nas palavras de dona Olívia, que tem mais recursos, patrocínios e possibilidades de investimento em alegorias, fantasias e equipamentos no geral, e as escolas de comunidade.
Roque relembra o samba-enredo da carioca Império Serrano, de 1982: “É carnaval, a folia, neste dia ninguém chora/ Super Escolas de Samba S.A./ Super-alegorias/ Escondendo gente bamba/ Que covardia!”. Para ele, uma escola tem de manter a tradição do samba e a integração da comunidade de forma lúdica, artística. Além de servir como porta-voz dos interesses e necessidades do bairro.
Dona Olívia, aposentada que trocou a casa própria por um espaço para fazer de barracão da escola, nos fala das alegrias e dificuldades na presidência de uma agremiação. Fica feliz por ter construído uma família no bairro, mas não sabe até quando o carnaval vai durar em Bauru. “Já que ninguém ajuda com nada, acaba”, diz ela. “E mete um trio elétrico no sambódromo”.
“A impressão que dá é que eles [poder público] querem que a gente ande com as pernas da gente, mas como vai vai andar se não tem condições?”, questiona a presidente da Coroa. “A nossa escola é comunidade, é pé no chão”.