Lei antifestas: Como o interesse privado impacta o rolê
Após aprovação da Lei Antifestas em 2017, eventos universitários mudaram de formato, sem acolher público bauruense; em paralelo, empresas privadas passaram a lucrar com a falta de opção
Publicado em 7 de junho de 2022
Por Arthur Castro, colunista do Jornal Dois
Vou começar esse texto escrevendo sobre o que não vou discutir aqui. Eu não vou discutir sobre festas populares, sejam fluxos, rolezinhos, bailes funk ou blocos de carnaval. Não porque não tenho o que escrever. Frequentei todos esses locais, sei o que acontece, e acredito que existe muito a ser falado e escrito sobre. Mas hoje quero refletir sobre um assunto em particular – as festas universitárias, em especial aquelas ligadas às e aos estudantes da Universidade Estadual Paulista (UNESP).
Escrevo como historiador que sou, e como cientista social, que virei a ser. Porém, mais do que como um pesquisador, escrevo como alguém comprometido em desvendar os movimentos de nossa sociedade. Não para observá-los a distância, mas para que possamos agir. É um assunto que, acredito eu, pode abrir um mar de reflexões que nos permita mais do que pensar onde estamos e para onde vamos, mas também sobre o que e quem somos, e o que e quem podemos nos tornar.
Festas clandestinas
Em 2015 faleceu Humberto Moura Fonseca, estudante universitário, em decorrência de uma fatalidade e, não podemos negar, de uma certa irresponsabilidade por parte da organização da festa Inter Reps. O estudante morreu depois de ingerir mais de 20 doses de vodca em competição organizada pelo evento.
Esse trágico acontecimento passou a ser utilizado com rapidez como ponto de partida de uma intensa campanha midiática contra as “festas clandestinas”. Todas as festas universitárias, com open bar ou não, passaram a ser apresentadas como algo fora de controle que precisava ser regulado ou combatido, pela segurança dos jovens.
Mas seria essa posição, adotada por autoridades e jornalistas, movida por um sincero e puro interesse em relação à juventude? A consciência individual de cada pessoa pode ser acessada apenas por ela mesma – desse modo não sou capaz de indicar quem era ou é genuinamente honesto nesse debate – mas podemos refletir sobre os fatos que nos são apresentados. E, em março de 2016, os fatos foram jogados sobre nós da forma mais nua e crua possível em uma matéria do Jornal da Cidade.
Ocorria um debate, com a presença do vereador Markinho da Diversidade, político ligado a uma famosa casa noturna da cidade na época, a respeito das festas universitárias, apontadas como um problema a ser resolvido. A reportagem do JC apresentou a opinião de Allison Carlos, então vice-presidente da Associação de Bares e Restaurantes de Bauru, que reclamou do imenso prejuízo financeiro causado às empresas do ramo pois, vejam só, a juventude da cidade preferia ir às festas de repúblicas do que nas tradicionais baladas. E assim, como num passe de mágica, a mão invisível do mercado se tornou visível e clamou por ações concretas.
Vamos entender melhor o que acontecia. Nessa época eu circulava por diversos lugares e posso passar um panorama geral. Uma festa de república custava, em média, de R$5 a R$20, caso fosse necessário a compra de bebida; se fosse open bar, o valor poderia subir a um preço entre R$25 e R$30. Por outro lado, as grandes baladas apresentavam um valor muito mais salgado: portaria de R$20 a R$30, somado com bebidas de preços acima do mercado. Não por acaso, centenas ou mesmo milhares de bauruenses trocavam com entusiasmo as últimas pelas primeiras.
“Que absurdo” era essa juventude optar por rolês mais acessíveis! E assim a necessidade de encerrar as “festas clandestinas” se tornou o foco central das reuniões do Conselho de Segurança de Bauru, mais especificamente o Conselho Comunitário de Segurança (Conseg) Centro-Sul. Empresários, políticos e policiais passaram a conversar com entusiasmo sobre a necessidade de maior fiscalização desses eventos.
E foi assim que, alegando preocupação para com o bem-estar da nossa juventude, em maio de 2016 a Polícia Militar entrou em um churrasco particular da República Risca Faca, em um episódio que repercutiu no Brasil devido às violentas agressões contra os presentes.
Não empata meu rolê
O caso sacudiu a comunidade universitária. A brutalidade policial despertou indignação, e a partir de então se acenderam as movimentações da juventude na cidade.
Algumas pessoas acreditam que tudo não passou de um despreparo pontual da polícia, mas a apresentação de um Projeto de Lei de proibição das “festas clandestinas”, a Lei Antifestas, logo assumiu o centro da discussão. O seu conteúdo evidenciava a real intenção em ter a lei aprovada: impedir a realização de qualquer evento que não fosse organizado por uma empresa privada.
Ao longo de 2016 foi iniciado um intenso cabo de guerra que, com a mobilização das e dos estudantes unespianos associada à esquerda bauruense, conseguiu adiar a votação do projeto para o ano seguinte. Mas tão logo o ano virou, a situação mudou.
Em primeiro lugar, o vereador Markinho decidiu se desassociar da bandeira antifestas, e afastou-se da cena pública da discussão. Em segundo lugar, o Coronel Meira acabava de ser eleito vereador, e assumia publicamente a defesa da lei proibitiva.
Importante mencionar que, em 2013, Meira foi o Comandante Geral da Polícia Militar durante os protestos que sacudiram o país, e basta uma pesquisa nas notícias para ver como foi a postura policial diante de manifestantes naquele ano.
Mas talvez a maior derrota tenha sido a desistência da luta por parte do público universitário. Ao contrário do ano anterior, a comunidade unespiana não mostrou interesse em agir. As Atléticas de diversas universidades disseram que não se envolviam em política, apesar de acharem a luta justa. E, surpreendentemente (ou não), alguns espaços culturais da esquerda de Bauru também viraram a cara, afinal, entendiam que o problema era “apenas” de unespianos.
Isso não impediu que muitos jovens socialistas, comunistas e anarquistas de Bauru tomassem a Câmara dos Vereadores, em uma radicalização da luta contra esse projeto de lei – que era entendido por eles não só como uma ameaça às festas de república, mas como um risco a todos os eventos populares, em especial em bairros pobres.
A reação veio com força: no dia da votação da lei, os vereadores, em circunstância nunca antes vista, fizeram uma votação antecipada e com duração de cerca de 30 minutos, como forma de escapar da manifestação agendada para o dia. Todos os vereadores aprovaram a lei, com exceção do vereador Markinho que, vejam só, se declarou impedido de votar por ser ligado à uma casa noturna.
Uma nova ocupação da Câmara foi realizada, e o Prefeito Gazzetta aceitou uma conversa com os manifestantes, o que não impediu que ele sancionasse a lei. E assim, no ano de 2017, a Lei Antifestas passou a valer em Bauru.
Nós x Eles
Antes de 2017, festa de república era algo que não faltava. Em qualquer dia da semana era fácil encontrar duas, três ou mais ocorrendo, feitas sob todas as medidas e para todos os públicos. Havia festas com música eletrônica e com MPB, com maior ou menor presença bauruense, e até mesmo festas voltadas à comunidade LGBTQIA+. Mas essa ampla diversidade e riqueza estava destinada a acabar, e assim foi feito, de forma gradual.
O medo da multa – que podia chegar a 10 mil reais – levou as festas à escassez. Depois de 2017, se houvesse dois eventos universitários no mesmo dia, já podia ser considerado algo ousado. E tal como na história sempre vimos – que diante de crises econômicas profundas as pessoas buscam o “culpado” no lado mais vulnerável – a comunidade unespiana encontrou o seu problema.
O bauruense não unespiano passou a ser o Outro – aquele que não sendo do meio, era o estranho, o diferente, o que não se encaixa. Se antes as festas de república acolhiam, em maior ou menor grau, todas as pessoas, agora era diferente: pague R$5 se for unespiano, mas se for de fora, pague R$50.
O bauruense, começaram a dizer, é o incivilizado, o selvagem, aquele que inicia brigas nas festas e que assedia as mulheres. O bauruense é conservador, odeia universitário, e por isso a Lei Antifestas foi aprovada. Um problema que não existia ou que ao menos não era relevante até 2017, passou a assombrar a toda a UNESP.
A discriminação de unespianos contra bauruenses cresce na mesma medida em que as festas de repúblicas diminuem. E ai de quem questionar! Quaisquer críticas a esse sentimento resultam em uma defesa unida da comunidade unespiana contra a população de Bauru.
Da preocupação legítima com questões de gênero ao velho discurso contra a “inveja” de quem não passou no vestibular, passando por acusações de furtos, vários argumentos foram usados para defender a necessidade da exclusão. É claro que existiram vozes dentro da universidade em oposição a tal discurso, principalmente por parte daqueles unespianos que também eram bauruenses.
Era inegável que o clima havia mudado, e não para melhor. O que antes era um ambiente diverso, acolhedor, em que a conversa entre pessoas diferentes era incentivada, agora se tornava um espaço paranoico, às vezes elitista, e a todo momento ameaçado por uma eventual batida da polícia – que poderia fazer centenas de pessoas terem gasto dinheiro à toa, pois não seriam restituídos financeiramente.
O novo mercado universitário
E então os mortos se fizeram vivos, e outra vez a mão invisível se fez visível.
As antigas casas noturnas desapareceram, e logo foram substituídas por novos espaços de lazer que, vejam só, estenderam com generosidade suas mãos aos universitários “órfãos”.
Grandes estabelecimentos firmaram parcerias com as repúblicas e atléticas, garantindo tudo do bom e do melhor, pelo preço certo. De grandes eventos às festas mais restritas, bares e baladas começaram a fornecer o mesmo serviço, mas agora dentro da nova legalidade e sob generosos patrocínios de famosas marcas empresariais.
O que antes era uma força social descentralizada e espontânea logo se tornou um mercado bastante lucrativo. Se antes poderíamos ter festas de repúblicas de esquerda, progressistas e feministas com um clima interno inclusivo e humano, agora todas as festas estavam sendo reduzidas a clubes fechados ou eventos mercantilizados.
Não por acaso, já em 2017, Bauru hospedou o Interunesp e seus grandes eventos open bar, para o desgosto dos conservadores e sob os aplausos de políticos e empresários, os mesmos que aprovaram a Lei Antifestas. E foi nesse espírito que, no ano de 2019, os blocos de carnaval privados foram permitidos, enquanto na avenida Nações Unidas o bloquinho mais popular foi encerrado sob bombas e gás lacrimogêneo.
E agora?
Se é verdade que a covid-19 trouxe novas realidades, também é verdade que a essência do debate não se alterou. Não há que se falar em evitar a aglomeração em festas populares enquanto são permitidos eventos de empresas privadas; não há que se falar em proibir festas, quando milhares de trabalhadores são forçados a se aglomerar em ônibus lotados todos os dias. Mas essa é uma discussão para outro texto.
A polêmica da Lei Antifestas nos mostra como, a partir de um interesse empresarial específico, o cenário da nossa cidade virou do avesso. Uma cultura dos meios universitários, democrática e popular, foi esmagada e substituída por uma versão mais pálida e superficial, enquanto a rivalidade, a desconfiança e a hostilidade foram semeadas como estratégia de divisão.
Essa não é uma discussão simples sobre jovens querendo beber. Não vou negar que existem muitos problemas a ser resolvidos. Existiam antes da proibição às festas clandestinas e continuam existindo depois. A discussão que se coloca é sobre o direito ao lazer, o direito ao riso, o direito ao gozo, que se opõe à frieza e crueldade do interesse do mercado e da insensibilidade da burocracia do Estado.
Não é sobre o direito a qualquer lazer, mas um lazer que nos torne mais do que consumidores, um lazer que nos humanize e que nos ensine responsabilidade, afeto, respeito ao próximo e solidariedade. Esses valores não podem ser comprados por moedas e nem impostos por leis garantidas sob botinas e sirenes.
“Se eu não posso dançar, não é minha revolução” Emma Goldman, anarquista lituana