Bauru registra 670 ações de despejo e de reintegração de posse na pandemia

Falta de pagamento foi principal motivo para ações, que ocorreram entre março de 2020 e agosto de 2021; crise sanitária e econômica, desemprego e inflação, lembram especialistas, constroem cenário que levou ao fracasso do enfrentamento da covid-19 e à piora na vida da população

Publicado em 21 de outubro de 2021

Em julho de 2021, assentamento Morada Nova recebeu ação de reintegração de posse por parte da prefeitura de Bauru (Foto: Camila Araujo)
Por Victória Ribeiro
Edição por Bibiana Garrido

O Tribunal de Justiça de São Paulo registrou 487 ações de despejo e 183 ações de reintegração de posse em Bauru durante a pandemia, segundo dados obtidos pelo Jornal Dois via Lei de Acesso à Informação. O período analisado vai de 20 de março de 2020, data em que foi decretada calamidade pública para enfrentamento da pandemia de covid-19, até agosto de 2021.

No caso das ações de despejo, que são referentes à desocupação ou remoção forçada de imóveis públicos ou privados, o número total registrado em 2020 é 23% inferior ao mesmo período observado em 2019, quando 425 ações do mesmo caráter foram registradas. Já em 2021, o número de ações ocorridas nos 8 meses analisados foi 21% inferior ao mesmo período de 2019 e 11% superior ao de 2020.

Com 161 registros de despejo, número de ações em 2021 é 11% superior ao mesmo período analisado em 2020

As principais motivações das ações foram “falta de pagamento cumulado com cobrança” e “falta de pagamento”. De acordo com o advogado Victor Almeida, ambas as ações se devem à inadimplência do locatário, com a diferença de que no “despejo por falta de pagamento” a cobrança é discutida após a desocupação do imóvel. Nos casos em que o proprietário ingressa com uma ação desse tipo em caráter liminar, conforme explica o advogado, o inquilino tem 15 dias para quitar a dívida ou pode ser despejado.

Segundo o cientista econômico Felipe Duarte, o Brasil enfrenta “uma crise econômica de raízes políticas”, sendo que o desemprego e a aceleração inflacionária explicam o contexto habitacional. De acordo com o economista, a crise no mercado de trabalho se iniciou em 2015, com 10 milhões de brasileiros desempregados, segundo dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) e aumentou de maneira significativa durante a pandemia. 

Em agosto deste ano, com 14,4 milhões de brasileiros desocupados, o país registrou uma queda de 0,6% no índice de desemprego, segundo a PNAD. O economista explica que isso se deve à criação de empregos de baixa qualidade e com rendimentos médios menores aos observados em 2015, o que interfere no poder de compra do trabalhador. “A gente percebe a queda no índice de desemprego, mas em contrapartida as pessoas estão comprando menos, porque estão recebendo muito menos do que recebiam antes”, afirmou Felipe.

Além da crise no mercado de trabalho, o economista também ressalta a desorganização das redes de processo que ocorrem ao redor do mundo dentro do contexto produtivo global. “É importante observarmos o aumento dos preços das commodities e do dólar, que junto de uma série de escolhas políticas, como a ausência de estoque regulador, implicaram no aumento dos preços de produtos básicos de alimentação, impedindo que pessoas possam ao menos se alimentar de maneira digna”, comentou o economista.

Apenas em Bauru, de acordo com dados da Secretaria de Bem-Estar Social (Sebes), mais de 70 mil pessoas estavam vivendo em situação de vulnerabilidade social em abril deste ano, das quais 10.102 em situação de extrema pobreza, 3.093 em situação de pobreza e 57.011 com meio salário mínimo.

Para Jefferson Oliveira Goulart, professor de Arquitetura e Urbanismo com foco em políticas públicas, os despejos representam o fracasso do plano de ação do governo para o enfrentamento da emergência sanitária. “A pandemia não produziu desigualdades, reforçou as já existentes. A inadimplência não é um gesto de má vontade ou de má índole, mas o resultado de uma situação desesperadora de quem não tem como pagar suas contas por não ter renda suficiente”, afirmou.

Reintegração de posse

Moradores de Bauru também acompanharam o cumprimento de reintegrações de posse, em áreas públicas e privadas, durante a pandemia. De março de 2020 a agosto de 2021, 183 ações desse caráter foram registradas no município, sendo que dessas ações, 12 foram movidas pela prefeitura. Um exemplo aconteceu em julho de 2021, quando Márcio Oliveira, líder regional do Movimento Social de Luta dos Trabalhadores (MSLT), foi convocado para uma audiência judicial que discutia a reintegração de posse do assentamento Morava Nova, localizado na Vila Aimorés. 

Com 141 ações de reintegração de posse, registros em 2020 foi 8% inferior à 2019

Em nota ao Jornal Dois, a Prefeitura de Bauru afirmou que está seguindo o decreto do Supremo Tribunal Federal (STF) que, em junho deste ano, suspendeu reintegrações de posse durante seis meses no país. Questionada sobre a ação no assentamento Morada Nova, a administração informou que o decreto valerá para este caso, que será novamente discutido depois do término do prazo dado pelo judiciário.

Na opinião de Goulart, “despejos e ações de reintegração de posse não podem prevalecer sobre o direito constitucional do direito à moradia e do imperativo de promover a urbanização e a regularização de assentamentos populares, principalmente durante a pandemia”.

Moradia na gestão Bolsonaro

Publicado em julho de 2019, um levantamento do Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc) revelou que o setor da moradia foi o mais afetado pelo corte de verbas do governo federal, atingindo 90% do orçamento autorizado para aquele ano, o equivalente a R$ 212 milhões.

Na campanha eleitoral, o tema não foi incluído no plano de governo do então candidato Jair Bolsonaro (Sem Partido). Em entrevista durante o período eleitoral, o presidente demonstrou sua vontade de extinguir o Ministério das Cidades, antigo responsável pelo programa Minha Casa Minha Vida (MCMV), e repassar as verbas direto para os municípios. Com a posse, a pasta foi fundida ao Ministério da Integração Nacional, dando origem ao Ministério do Desenvolvimento.

Segundo a Associação Brasileira de Incorporadoras Imobiliárias (Abrainc), o Brasil possui um déficit de 7,797 milhões de moradias. Esse cenário impulsionou críticas dos movimentos populares, quando em agosto de 2020, o governo federal substituiu o MCMV pelo programa habitacional Casa Verde e Amarela. A principal reclamação das entidades dizia respeito ao fato de a ação não prever a construção de novas casas para a população mais vulnerável, a chamada “faixa 1”, que engloba famílias com renda de até R$ 1.800.

Pandemia

De acordo com o levantamento da Campanha Despejo Zero, com dados atualizados até 30 de agosto, 19.875 famílias foram expulsas de suas casas no Brasil, desde o mês de março de 2020. Outras 93.485 famílias estão ameaçadas de desocupação.

Baseado nos números da Campanha e em resposta à ação apresentada pelo PSOL, o ministro Luís Roberto Barroso, do Supremo Tribunal Federal (STF), aprovou, em junho deste ano, medida cautelar que suspende por seis meses ordens ou medidas de desocupação de áreas que já estavam habitadas antes de 20 de março do ano passado, quando foi aprovado o estado de calamidade pública em razão da pandemia de covid-19. A medida cautelar tem a finalidade de evitar prejuízos que a demora no julgamento principal possa acarretar.

A decisão de Barroso foi criticada pelo presidente Jair Bolsonaro, que afirmou que a ordem representa um ataque à “propriedade privada, que é a base do capitalismo”.

Em agosto, o Projeto de Lei 827/2020, que proíbe o despejo ou desocupação de imóveis até o fim de 2021, de autoria dos deputados André Janones (Avante) e Professora Rosa Neide (PT), foi vetado por Bolsonaro. O veto, no entanto, foi rejeitado por deputados e senadores durante sessão no Congresso Nacional, em setembro.

Com a rejeição, os despejos motivados pelo não pagamento de aluguel, estarão suspensos até 2021 nos casos de imóveis comerciais até R$ 1.200 mensais e até R$ 600 nos residenciais. No caso das ações de reintegração de posse, a lei é válida apenas para ocupações feitas antes de 31 de março de 2021 e não alcançam ações já concluídas. 

Para o economista Felipe Duarte, o dispositivo jurídico é importante, mas soluções a longo prazo também precisam ser pensadas. Como exemplo, o cientista econômico citou a criação de empregos de qualidade e, em termos estruturais, a distribuição de estoque e fluxo de riqueza. “Muitos gostam de dizer que o Brasil tem um déficit habitacional, mas isso não se deve à falta de casas, mas sim à uma concentração do patrimônio e da concentração da propriedade, então são vários os níveis de enfrentamento e que precisam ser pensados”, afirmou.

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