Sem orçamento, artistas protestam por Cultura em Bauru; entenda

Falta de editais e cortes de verba na pasta motivam atos nos dias 14 de agosto, às 13h, na Esquina da Resistência, e no dia 16 às 10h, em frente ao Teatro Municipal

Publicado em 10 de agosto de 2021 

Suéllen Rosim (Patriota), prefeita de Bauru, assumiu a gestão do poder Executivo há 8 meses e nomeou Tatiana Sá como secretária da Cultura (Foto: Thayna Polin/Prefeitura de Bauru)
Por Camila Araujo 

Um grupo da classe artística de Bauru, composto por mais de 90 pessoas, vai realizar dois dias de protesto contra o que chamam de “falta de transparência” e a lentidão da Secretaria Municipal de Cultura. Eles apontam que desde o início do ano não houve a publicação de nenhum edital de financiamento ou qualquer tipo de auxílio financeiro para o setor, um dos mais impactados pela pandemia.

Marcado para 14 de agosto, o ato “Silêncio, a cultura dorme” será às 13h na Esquina da Resistência, localizada na quadra 5 da Rua Batista de Carvalho. Já no dia 16, será às 10h em frente ao Teatro Municipal, onde também funciona a sede da Secretaria de Cultura, na quadra 8 da Avenida Nações Unidas.

“A secretária de Cultura só conversa e não apresenta soluções”, reclama Mariza Basso, produtora cultural, atriz e diretora da Companhia Mariza Basso de Formas Animadas, que compõe o movimento. 

Para ela, a situação da Cultura piorou com a mudança da gestão da prefeitura, que tem desde janeiro de 2021 Suéllen Rosim (Patriota) como chefe do Executivo. “Ano passado já foi bem sofrido com a surpresa da pandemia, mas esse ano as coisas pioraram”, diz. Por conta da crise sanitária, artistas e fazedores de cultura da cidade não puderam realizar seus trabalhos, fazer shows, promover espetáculos e vender suas produções. 

Pelo menos 330 foram afetados pelo contexto, de acordo com o cadastro realizado no município para a distribuição do auxílio emergencial da Lei Aldir Blanc (Lei Federal nº 14.017/2020), com quatro parcelas de R$600, pagos a até duas pessoas de uma mesma família. Mães solteiras receberam parcelas no valor de R$1.200. Cerca de 90 espaços culturais também solicitaram o auxílio, que variou entre R$3 mil a R$10 mil. Veja a lista completa de beneficiários aqui

O total destinado para a execução da lei em todo o país foi de R$3 bilhões, sendo que Bauru recebeu R$2,4 milhões, dos quais 99% já foram pagos. A lei também estabeleceu que 20% dos recursos fossem usados em editais de fomento à cultura, sob a organização dos municípios.  

Com o fim do pagamento das parcelas da Lei Aldir Blanc, as contas voltaram a ficar no vermelho. A produtora cultural Mariza conta que presenciou amigos músicos vendendo seus instrumentos, artistas passando necessidades, alguns tendo que trabalhar como Uber. “Enquanto isso, a secretaria de Cultura está de braços cruzados”, reclama, afirmando que “a pasta só conversa e não apresenta soluções”.

Para a atriz, que é também organizadora do Boneco Gira Boneco – Festival Internacional de Teatro de Bonecos, a atual secretária da Cultura Tatiana Sá “não representa nossa classe”, “não tem preparo, experiência ou competência para assumir o cargo que está ocupando” e “não foi capaz de ter um diálogo com a prefeita para defender a classe artística”.

Mariza Basso comenta que no momento está trabalhando em quatro projetos de editais da Lei Aldir Blanc para os quais foi selecionada, e destaca que a lei “é conquista da esquerda e da classe artística”.

Paulo Maia é pianista formado pelo Conservatório de Tatuí e foi classificado no Concurso de Piano Guiomar Novaes, para concorrer na categoria de 10 grandes pianistas populares do país. Ele opina que a falta de investimento na pasta é uma “retaliação” da prefeita contra a categoria de artistas, e considera que o edital unificado representa muito pouco dinheiro investido no setor. Impossibilitado de trabalhar, voltou a dar aulas de música “para sustentar a família”.

No vídeo, o grupo Paulo Maia Trio apresenta trabalho “Criando Caminhos” realizado por meio do edital da Lei Aldir Blanc. 

Um novo cadastramento de “artistas, grupos, associações e outros profissionais da arte e cultura” foi lançado pela prefeitura para “orientar o desenvolvimento de novas políticas públicas para o setor e aprimorar as já existentes no município”. Até o momento, 362 artistas estão inscritos, além de 110 espaços culturais, o que representa um aumento em relação ao cadastro da Aldir Blanc no ano anterior.

O que a prefeitura tem feito

Em 26 de abril, a prefeita Suéllen Rosim anunciou que a Secretaria de Cultura se preparava para lançar editais de fomento do setor e “levar cultura para todos”. Em nota, a atual chefe do Executivo afirmou que os quatros primeiros editais do ano seriam lançados entre junho e julho.

Em maio, a prefeitura anunciou o corte de R$1,4 milhão no orçamento da Secretaria de Cultura (Foto: Thayna Polin/Prefeitura de Bauru)

Um mês antes dos lançamentos começarem, a Secretaria anunciou em 12 de maio o contingenciamento de R$ 1,4 milhão do setor, ou seja, a retirada de um valor que estava previsto pela Lei de Diretrizes Orçamentárias do município para a pasta.

Esse corte seria retirado do custeio de eventos como Carnaval, Grande Expo, Parada da Diversidade, comemoração presencial de aniversário da cidade, e aplicado, de acordo com a prefeitura, nas Secretarias de Saúde e de Bem-Estar Social. Na ocasião do anúncio, a Cultura reforçou ainda o lançamento de quatro novos editais entre junho e julho. Até a publicação desta matéria, em 9 de agosto, nenhum dos editais anunciados foi lançado. 

Esse é o motivo, atrelado a falta de diálogo e transparência, segundo os artistas que conversaram com o Jornal Dois, que desencadeou a insatisfação da classe e a promoção de protestos na próxima semana. Um dia depois da divulgação das datas dos atos, Suéllen publicou em suas redes sociais: “Atendi o (sic) pedido dos artistas para liberar um edital único no valor de R$200 mil para o fomento da cultura neste semestre”. Ela também falou em “celeridade” para a publicação dos editais. 

 

 
 
 
 
 
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Questionada, a Secretaria de Cultura explicou ao J2 que “o valor de 200 mil reais anunciado pela prefeita é referente aos Editais Expedições”, ou seja, aqueles que estavam previstos para serem lançados entre junho e julho. De acordo com nota da prefeitura, “a liberação do recurso foi possível após o credenciamento de leitos do hospital de campanha, com o Ministério da Saúde passando a custear parte do valor, e o restante continua sendo pago pelo município para a manutenção das vagas”. 

Até o momento da publicação desta reportagem, o edital não foi efetivamente publicado, e não há informações sobre como vai funcionar a submissão de projetos, qual o valor a ser destinado para cada artista inscrito ou quais serão as contrapartidas. 

Para o segundo semestre, outros seis editais haviam sido anunciados pela prefeita a serem lançados entre agosto e dezembro: Programa de Estímulo à Cultura (PEC), que existe desde 2004 e que desde então estabelece que R$ 200 mil da pasta devem ser necessariamente destinados ao edital – sem nunca ter sido reajustado; Fundo Especial de Promoção das Atividades Culturais (FEPAC), criado na gestão do prefeito Antonio Izzo Filho, em 1991; e “outros novos como o ‘Pontinho de Cultura’”, escreveu Suéllen na ocasião, declarando que “vamos trabalhar para que mais artistas sejam contemplados!!!!”

O edital do PEC de 2019 foi cancelado pela Secretaria de Cultura neste ano, em 2021. O edital foi lançado na gestão do prefeito Clodoaldo Gazzetta (PSDB) com período de inscrição fora daquele que é previsto em lei, que estabelece o período de inscrição entre 15 de setembro e 15 de outubro. Em 2019, o PEC foi publicado em 28 de setembro com datas de inscrição entre 30 de setembro e 29 de novembro. 

“A Procuradoria Geral do Município, diante da inobservância às regras legais, concluiu pela impossibilidade jurídica de formalização dos termos de contrato pretendidos, pelo descumprimento dos prazos fixados em lei”, declarou a prefeitura em fevereiro deste ano, já sob nova gestão. De tal forma que os R$200 mil “carimbados” para este fim não foram utilizados e voltaram ao orçamento da pasta. Em 2020, também não houve a publicação do edital devido ao estado de pandemia. 

Cortes na Cultura 

O orçamento previsto para a pasta da Cultura em 2020 era de R$ 14,7 milhões e representava um aumento de 20,3% se comparado com o orçamento de 2019. Já para 2021, orçamento previsto era de R$13,8 milhões, estabelecido pela gestão anterior da prefeitura e aprovada pela Câmara Municipal.

Esse valor significava que a pasta sofreria uma queda de cerca de 10% em relação ao orçamento de 2020. Com o contingenciamento de R$1,4 milhão anunciado pela nova gestão, o total de cortes da Secretaria de Cultura soma mais de 20%. 

Outro valor que chama atenção foi publicado no Diário Oficial do dia 31 de julho. No documento, a prefeitura sancionou uma lei que fala de “transposição de recursos no Orçamento vigente do Município de Bauru”. 

Na norma, ficou estabelecido um valor de R$1,6 milhão da formação e difusão cultural como verba de transposição, isto é, de corte da pasta. Questionada sobre o que significa esse montante, com R$200 mil a mais do valor que o que havia sido anunciado inicialmente, a prefeitura não respondeu até a publicação desta reportagem. 

“Na teta do município”

“Corte severo de uma pasta que já não tem muita verba”, descreve Marcio Pimentel, diretor e fundador da Companhia de Teatro Sylvia Que Te Ama Tanto, sobre a retirada de orçamento da Cultura. Ele também é diretor da Associação de Teatro de Bauru e região (ATB), integra o grupo que organiza os atos “Silêncio, a Cultura dorme” e afirma que a cultura está “sendo aniquilada com uma verba mínima”, chamando o valor de R$200 mil anunciado pela prefeita na última semana de “pífio”. 

Espetáculo da Companhia de Teatro Sylvia que Te Ama Tanto (IFoto: Cia. Teatro/Reprodução)

Ele criticou a postura da secretária Tatiana Sá ao declarar, em entrevista, que a pasta estaria “esperando a pandemia passar”. Para Márcio, é “um absurdo” essa posição da secretária. “Esperar a pandemia passar para fazer alguma coisa? Nesse momento que mais precisamos?”, indagou, afirmando que “essa pandemia veio pra ficar” e que “ainda não estamos todos vacinados” sendo o Brasil um dos últimos na campanha de imunização. 

O Brasil estava em 69º lugar no ranking global de aplicação de doses da vacina contra por 100 habitantes na sexta-feira (6), de acordo com dados da Agência CNN. 

“O edital está atrasado e os artistas estão à deriva”, lamentou Márcio. Ele afirmou que se trata de uma obrigação do município fomentar o setor de cultura e que a classe a qual ele representa está “chocada” com a atual administração. Para o diretor, o valor de R$200 mil não é suficiente para abraçar toda a demanda de artistas da cidade e se trata, na verdade, “de uma esmola” feita para “tapar um buraquinho”. 

Ariane Barros trabalhou por mais de 30 anos na Secretaria de Cultura como agente cultural. Ela entrou como estagiária e saiu aposentada. Atualmente integra o grupo de artistas e fazedores de cultura insatisfeitos com as ações tomadas pela prefeitura para o setor. Para ela, a impressão que a prefeita passa para a população é que R$200 mil é muito dinheiro e que não há contrapartidas. Ao ler os comentários nas redes sociais de Suéllen Rosim, Ariane diz que teve a impressão de que “as pessoas pensam que artistas vivem na teta do governo”. 

O músico Paulo Maia lamenta que a classe “não sabe de nada” porque as informações estão muito “nebulosas”. “Pra mim o pior é o descaso da secretaria junto a prefeitura”, diz. Ele afirma que sugeriu à Tatiana Sá “várias propostas” para reverter a situação e que outras cidades podem ser usadas como exemplo, como São José do Rio Preto, Araraquara e São Carlos, que estão promovendo auxílios municipais ao setor. 

“A partir do momento em que você deixa de fomentar a produção cultural, a população passa a perder acesso à cultura”, declarou José Vinagre, produtor cultural e ex-secretário da Cultura entre 2005 e 2008. 

Para José, algumas dimensões compõem o entendimento do que é cultura: simbólica, que seria a própria arte; inclusiva, que inclui a sociedade em um projeto de autoconhecimento enquanto processo histórico e de identidade; e econômica, que impulsiona a economia criativa e faz o dinheiro circular. “Imagina durante a pandemia se a gente não tivesse uma música para ouvir ou um teatro online para assistir?”, questiona o produtor. 

Ele aponta outros problemas que também afetam o setor, como a manutenção do Teatro Municipal de Bauru, que está com o ar condicionado quebrado, e a indefinição da sede da Banda e da Orquestra Sinfônica na cidade. 

Os projetos da banda e da Orquestra Sinfônica de Bauru, que existem desde 2002 e 2004 respectivamente, já passaram por alguns prédios na cidade. Até 2017, eles ocupavam o prédio do Automóvel Clube de Bauru. Depois, passaram a tocar no prédio da Estação Ferroviária da Noroeste do Brasil (NOB) até dezembro de 2020. E depois foram remanejados para um prédio dos Correios na rua Saint Martin 15-41, que tem contrato de aluguel com a prefeitura até setembro deste ano, sem previsão para renovação. 

Para o pianista Paulo Maia, a retirada dos projetos do Automóvel Clube foi “uma questão criminosa”, afirmando que o prédio da Estação, para onde o projeto foi encaminhado em seguida, estava “sem condições” e “já devia ter sido fechado naquela época”. Representante da Banda Sinfônica, ele diz também que a conquista do prédio dos Correios aconteceu “depois de muita briga”. 

O Jornal Dois perguntou ao poder público se há previsão de mudança da sede do projeto, e recebeu uma resposta negativa. A prefeitura também informou que “a equipe da secretaria, desde o início do ano, está fazendo levantamentos de imóveis federais, estaduais e municipais”. 

A respeito do teatro, a prefeitura afirma que está fazendo “levantamentos junto a secretaria para providenciar um cronograma” da reforma. O processo licitatório, de acordo com nota da gestão pública, está em momento de análise e deve ser publicado até o final deste ano. 

“Depois de 8 meses de gestão com ar condicionado quebrado, mais pelo menos três meses para a conclusão do processo licitatório a partir do momento em que ele for publicado, e depois a execução do serviço. Desse jeito o teatro só vai abrir no segundo semestre do ano que vem”, avalia José Vinagre. 

Um corpo dança por Cultura

“Tenho fé de que as coisas vão melhorar, mas acredito também que temos que arregaçar as mangas e continuar na trajetória”, escreveu Valdemir Aparecido Raimundo, ou Val Rai, em um artigo de 2007, após ter realizado uma intervenção artística na Câmara Municipal de Bauru naquele ano.

“Dancei butoh e vou continuar dançando butoh todas as vezes que causas que me afligem e atingem a minha categoria vierem à tona no plenário da Câmara. Todas as vezes que causas tocarem em meu coração com justificativas racionais e coerentes. É meu mundo, senhor leitor, minha vida”, declarou o artista na ocasião. 

A casa legislativa realizava discussões acerca do Programa de Estímulo à Cultura, lei que existia desde 2004, que seria revogada e republicada com modificações em 2008. José Vinagre, à época secretário de Cultura, presenciou a cena: “foi uma manifestação muito importante, com repercussão nacional, mesmo sem o poder das mídias sociais que temos hoje”, lembra, afirmando que “várias comunidades japonesas no Brasil repercutiram o ato”. 

Isso porque Butoh é uma dança artística expressionista desenvolvida no Japão depois da Segunda Guerra Mundial, retratando a derrota e a violência sofrida pelo país no contexto bélico. “Dancei butoh porque quero solução por parte de nossos representantes no Legislativo”, disse Val Rai. Quatorze anos mais tarde, a classe artística de Bauru volta a “dançar” por causas que julgam “necessárias ao espírito humano, essa espécie em extinção”, como disse Val Rai lá atrás. 

A reportagem pediu um posicionamento para a secretária da Cultura Tatiana Sá sobre as manifestações dos artistas em relação a atuação da pasta. Até o momento da publicação desta matéria não houve retorno. Quando e se assim o fizer, este texto será atualizado.

A Secretaria Municipal informou que na última quinta-feira de todo mês é feita uma reunião para realizar informes sobre a secretaria e para ouvir sugestões da categoria. O próximo encontro está agendado para o dia 26 de agosto, às 16h.

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