Prefeitura e planos de saúde adotam medicamentos ineficazes contra covid-19 em Bauru
No auge da pandemia, ações sem comprovação científica tomam conta da saúde municipal
Publicado em 9 de abril de 2021
Por Michel Amâncio
Edição Bibiana Garrido
A adesão aos medicamentos do chamado “kit covid” tem ganhado espaço em Bauru. Médicos da rede pública de saúde e também da rede privada estão receitando remédios sem eficácia comprovada, como azitromicina, ivermectina e cloroquina, para o tratamento de pacientes com suspeita de covid-19. Empresários doaram ivermectina à Secretaria Municipal de Saúde em 1º de abril e, dois dias antes, vereadores do município assinaram moção de apelo para que a prefeita considerasse o uso de cloroquina e ivermectina para “tratamento precoce” durante a pandemia.
O “kit covid” geralmente é composto por cloroquina, ivermectina e azitromicina; todos são remédios sem eficácia comprovada no tratamento contra a covid-19, mas que servem para outras doenças. A cloroquina e a hidroxicloroquina, por exemplo, são usadas no tratamento da malária e de doenças autoimunes. Desde o início da pandemia, o governo federal, na figura do presidente Jair Bolsonaro (sem partido), tem indicado esses remédios para tratamento de pessoas com covid-19.
O presidente é responsável por estimular o Exército a fabricar 3,2 milhões de comprimidos de cloroquina, que foram distribuídos entre estados e municípios. De acordo com a Prefeitura de Bauru, a cidade não recebeu medicamentos do “kit covid” do governo federal. Ainda assim, documentos públicos comprovam que a Secretaria Municipal de Saúde compra e distribui ivermectina e azitromicina para tratamento de pacientes com suspeita de covid-19 na rede municipal desde 2020.
Contribuinte bauruense paga por ivermectina e azitromicina
O Jornal Dois acessou documentos no site da Prefeitura Municipal que mostram o uso de recursos públicos para a compra de medicamentos sem eficácia no tratamento de pacientes com covid-19. Todos datam de 2020, quando Clodoaldo Gazzetta (PSDB) ocupava o cargo Executivo e a Secretaria Municipal de Saúde era comandada pelo médico Sérgio Henrique Antonio, que assumiu a pasta em fevereiro daquele ano.
O primeiro documento assinado por Sérgio é um edital encerrado em 17 de julho de 2020 para a compra de 6 mil comprimidos de ivermectina, 20 mil comprimidos de azitromicina, 180 mil unidades de dipirona e 66 mil unidades de paracetamol. O pedido foi aprovado pela prefeitura pouco tempo depois, no dia 22 daquele mesmo mês. Conforme o documento, a justificativa utilizada pela secretaria para a aquisição dos medicamentos foi de que eles seriam utilizados “para tratamento de pacientes com covid-19”.
A reportagem também apurou que a compra não foi realizada por licitação. A secretaria contratou as empresas de medicamentos por meio da “Dispensa de Licitação”, uma ferramenta garantida em lei para acelerar a aquisição de bens ou serviços em caráter de urgência. As empresas contratadas foram a TCA Farma, que recebeu da prefeitura o equivalente a R$ 29,1 mil pela venda de ivermectina; e a Centermedi, que recebeu R$ 53 mil pela venda de azitromicina.
O segundo edital de compra dos medicamentos para o “kit covid”, também assinado por Sérgio, foi aprovado no dia 1º de outubro de 2020 e teve a participação de empresas concorrentes em uma licitação. Foram 18 mil unidades de ivermectina, vendidas pela Medsi por R$ 24.489,00, além de 48 mil unidades de azitromicina, comercializadas pela Inovamed pelo valor de R$ 96 mil. Assim como no primeiro documento, a justificativa da secretaria foi de que a aquisição dos medicamentos era de extrema urgência “para uso no tratamento de pacientes com covid-19”.
Desconsiderando o valor gasto nas compras de paracetamol e dipirona, que são remédios eficazes utilizados no tratamento dos pacientes com covid-19, as compras de ivermectina e azitromicina em Bauru no ano de 2020 somam mais de R$ 200 mil aos cofres públicos. O ex-prefeito Gazzetta, em entrevista ao Jornal Dois, foi questionado sobre as aquisições. Ele afirma que “nunca tivemos o tal do kit covid”, e que “a prefeitura e a secretaria nunca recomendaram tais medicamentos para uso no tratamento de covid”.
Gazzetta foi perguntado sobre as justificativas presentes nos contratos de compra, que não deixam dúvidas de que a azitromicina e a ivermectina foram remédios adquiridos para uso em pacientes com covid-19. O ex-prefeito afirmou que talvez os recursos destinados para a compra tenham sido vinculados à covid-19, e que “muitos médicos prescrevem tais medicamentos no acompanhamento dos pacientes, já que essa é uma prerrogativa da independência deles”.
O ex-mandatário disse que as decisões tomadas pelos técnicos da Secretaria Municipal de Saúde para a compra de medicamentos não passam pelo prefeito. O J2 tentou contato com o secretário à frente da pasta da saúde quando as compras foram realizadas, Sérgio Henrique Antonio. Questionado sobre sua versão dos fatos expostos e se houve algum tipo de pressão política durante a aquisição dos lotes de ivermectina e azitromicina, o ex-secretário não se manifestou até a publicação desta reportagem.
A reportagem conversou também com a atual gestão da Secretaria Municipal de Saúde, ocupada pelo vice-prefeito Orlando Costa Dias (Patriota), para saber o destino da ivermectina e da azitromicina comprada desde 2020. Segundo a pasta, os medicamentos adquiridos para tratamento de pacientes com covid-19 foram distribuídos entre as Unidades de Assistência Farmacêutica (UAFs), Unidades Básicas de Saúde (UBSs), Unidades de Saúde da Família (USFs), Unidades de Pronto Atendimento (UPAs) e Pronto Socorro Central (PSC).
De acordo com a pasta, o estoque de ivermectina do município está zerado, pois as tentativas de compra em 2021 fracassaram. Restam ainda 31.828 unidades de azitromicina distribuídas entre os locais de saúde citados. A Secretaria Municipal de Saúde se recusou comentar sobre o uso de ivermectina e azitromicina para o chamado “tratamento precoce” e no cuidado de pessoas contaminadas pelo novo coronavírus.
Uso do “kit covid” nas redes pública e privada de saúde
O Jornal Dois conversou com pessoas que, contaminadas ou não pela covid-19, receberam orientação médica para que usassem medicamentos como cloroquina, ivermectina e azitromicina. Os relatos se repetem em unidades de saúde públicas e particulares e são parecidos: o paciente é atendido e se queixa de um ou mais sintomas de covid-19. Então, antes de saber se está infectado ou não, o profissional de saúde entrega o receituário do “kit covid”.
Rafael Molina conta que procurou o atendimento no Pronto Socorro Central quando teve sintomas de uma gripe leve em outubro de 2020, sem perda de olfato ou paladar: “[O médico] mediu minha pressão e me receitou o ‘kit covid’, com azitromicina, dipirona e ivermectina. Preferi não tomar esses remédios. Vendo as notícias e tudo mais, eu vi que não era necessário, não é legal e não tem nenhuma comprovação de que realmente funcione”. Segundo Rafael, os sintomas duraram dois dias e depois sumiram. Alega que, por conta do horário de trabalho, não conseguiu fazer o teste da covid-19 e até hoje não sabe se foi contaminado ou não.
Também sendo atendida pela rede pública de saúde, Karol Lombardi teve a mesma experiência de receber a receita do “kit covid”. Em junho de 2020, teve sintomas de gripe e procurou a UPA do Bela Vista. O médico a atendeu e prescreveu azitromicina e ivermectina. “Eu tomei a ivermectina porque eram uma ou duas doses, mas a azitromicina eu não consegui tomar por mais de três dias”, diz Karol. Segundo a orientação do médico, ela deveria tomar o remédio por uma semana, mas fortes dores no estômago a fizeram interromper o uso.
“Hoje, vendo tantos casos de hepatite que estão acontecendo por conta dessa medicação, dou graças a Deus que eu não tomei todo o período que o médico indicou. Mas desde o começo eles já estavam receitando esse kit, e muita gente tomou. Aqui na minha família todo mundo tomou”, relata Karol.
Quando cita os casos de hepatite, Karol se refere às cinco pessoas que usaram o “kit covid” e foram para fila de transplante de fígado na capital São Paulo, no mês de março. Três delas morreram por hepatite que, segundo especialistas, pode ter sido causada pelo emprego dos remédios. Claudia Osorio, pesquisadora da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), concedeu entrevista à reportagem e cita os riscos do uso do kit: “Cada paciente pode ter mais ou menos comprometimento hepático, renal, pulmonar. Digamos que, sem eficácia comprovada, sobra o risco dos efeitos adversos”.
As mesmas recomendações médicas de uso do “kit covid” acontecem na rede privada. Beneficiária da Unimed Bauru, Adriana Calheiros teve sintomas em março de 2021 e procurou ajuda após cinco dias de persistência dos sinais. Quando foi atendida, conta que a médica lhe receitou dipirona, dexametasona, ivermectina e azitromicina. A paciente escolheu não tomar, por medo dos efeitos adversos: “Eu fiquei espantada com a quantidade de medicação, um absurdo esse tipo de receita”, diz Adriana. Alguns dias após a consulta, seu teste deu negativo para a covid-19.
Dandara Tierra, que possui plano de saúde do Grupo São Francisco, foi orientada a procurar atendimento por ter tido contato com familiares com covid-19. A médica que a atendeu receitou hidroxicloroquina, azitromicina e ivermectina. De acordo com Dandara, “a orientação era passar o ‘kit covid’ para todos os pacientes”. A profissional psiquiatra de Dandara não permitiu o uso de cloroquina e ivermectina, já que a paciente faz uso de medicação controlada que poderia reagir com o kit. “Fiquei apenas com a receita da azitromicina, tomei a medicação e suspendi quando o resultado deu negativo, conforme orientação da médica”.
Em resposta ao J2, Unimed Bauru e Grupo São Francisco apresentaram o mesmo argumento: de que a prescrição de medicamentos é uma decisão que cabe apenas ao médico em comum acordo com o paciente. O Grupo São Francisco afirma que não houve internações devido a efeitos colaterais no uso dos medicamentos do “kit covid”. A Unimed Bauru ressaltou estar seguindo as diretrizes do Conselho Federal de Medicina (CFM), entidade que defende que médicos sejam livres para recomendar remédios sem eficácia comprovada contra a covid-19.
Questionada sobre a posição do CFM, Claudia Osorio afirma que o uso desses medicamentos para a covid-19 não deve ser legitimado: “A autonomia médica só se justifica em face de evidência fundamentada, o que não ocorre aqui”. A professora da Fiocruz opina que a adesão de muitos médicos ao kit covid pode ser resultado de “problemas graves na formação e na compreensão do que seria a missão sanitária”.
Vereadores e empresários indicam apoio a tratamentos ineficazes
Em 29 de março, diversos vereadores bauruenses apoiaram uma moção para que a prefeita Suéllen Rosim (Patriota) realize estudos sobre “tratamento precoce” com ivermectina e cloroquina em função da gravidade da pandemia no município. O documento foi assinado pelos vereadores Ubiratan Sanches (Podemos), Wanderley Rodrigues Jr. (PSD), Guilherme Berriel Cardoso (MDB), Edmilson Marinho da Silva (PP), Luiz Carlos Bastazini (PTB), Marcelo Roberto Afonso (Patriota), Antonio Carlos Domingues (Cidadania), Edson Miguel de Jesus (Republicanos), Sergio Brum (PDT) e Luiz Eduardo Borgo (PSL).
O vereador que propôs a moção foi Ubiratan Sanches, conhecido como pastor Bira. Ao Jornal Dois, o gabinete do vereador confirmou que a iniciativa partiu de Ubiratan, mas que a proposta foi apenas “para realização de estudos, e não pedindo o uso imediato” dos medicamentos. Em um trecho da justificativa da moção, há indícios de que o documento tem o objetivo de colocar em prática o uso do “tratamento precoce” com “kit covid”, independentemente de estudos:
“Levando-se em conta o aumento de casos por infecção do covid-19 em nosso município, seria de extrema importância que o munícipe que apresentar uma síndrome gripal se dirija a uma Unidade Básica de Saúde (UBS) e o médico receite o tratamento precoce já na fase inicial da doença, reduzindo o período de enfermidade e evitando a disseminação do vírus”, diz o documento.
A vereadora Estela Almagro (PT) criticou a moção e se recusou a assiná-la, mesmo após pedido pessoal do vereador Ubiratan. Em publicação em suas redes sociais, Estela sustenta que “tratamento precoce é um engano científico com desperdício do dinheiro público”. Ainda segundo a vereadora, em áudio que circulou em grupos de funcionários públicos, Bauru deveria estar lidando com problemas como a transmissão acelerada da covid-19, a lotação nos ônibus e a falta de testagem em massa. “A câmara não tá cumprindo seu papel ao fazer um apelo pra que se invista em tratamento precoce com medicamentos pra lá de questionáveis, que não apresentam resultado”, avaliou Estela.
Dois dias após a moção na Câmara dos Vereadores, houve sinal do apoio de setores do empresariado da cidade a medicamentos ineficazes contra a covid-19. Em publicação em rede social, Alexandre Zwicker – advogado, empresário e ex-secretário de esportes no governo Gazzetta entre 2018 e 2020 – anunciou a doação de 5 mil comprimidos de ivermectina para a Prefeitura Municipal de Bauru. A doação foi realizada no dia 1º de abril em nome da Associação Bauruense de Desportos Aquáticos (ABDA) e da empresa Zopone Engenharia e Comércio. Não há registro do ocorrido no site da prefeitura.
A postagem rendeu manifestações e comentários ao longo do dia. Em meio a apoios e críticas, Alexandre Zwicker respondeu a uma seguidora e disse que a doação dos remédios não tinha um fim específico. Ao se defender da acusação de que estaria promovendo um medicamento ineficaz contra a covid-19, o advogado afirmou que a utilização dos medicamentos era de responsabilidade da prefeitura e dos médicos que viessem a receitar a ivermectina. Com a repercussão, a publicação foi apagada.
Na mesma semana da doação dos empresários e da manifestação de vereadores bauruenses, a Organização Mundial da Saúde (OMS) recomendou que a ivermectina não seja usada para tratamento de pessoas com covid-19, pois os resultados de estudos com o medicamento não comprovam a eficácia contra o novo coronavírus, tampouco contra os sintomas provocados pela doença.
Kit covid não reduz ritmo de mortes em Bauru
Ao ser questionada sobre quais deveriam ser as políticas públicas para medicamentos no Brasil no contexto de pandemia, uma vez que sobram críticas de especialistas ao “kit covid”, Claudia defende a Política Nacional de Medicamentos (PNM) e a Política Nacional de Assistência Farmacêutica (PNAF).
“Estão lá os conceitos fundamentais dos medicamentos essenciais e das prioridades sanitárias, do uso apropriado e monitorado dos medicamentos, e da responsabilidade compartilhada do gestor público, de quem prescreve e quem distribui em garantir a melhor e mais segura terapia medicamentosa”, defende a pesquisadora da Fiocruz.
A especialista farmacêutica também comenta que estudos mostraram que os medicamentos do “kit covid” são ineficazes contra a covid-19: “Estamos em pandemia há mais de ano e os medicamentos já foram testados e retestados em ensaios clínicos em que não se comprovou, de fato, eficácia. O tempo se esgotou”.
Mesmo com a disseminação do uso de azitromicina, cloroquina e ivermectina para tratamento de pacientes com suspeita de covid-19 nas redes pública e privada do município, não há melhora na situação sanitária em Bauru, que permanece grave. Segundo levantamento do Jornal Dois, o mês de março de 2021 teve o maior número de mortes desde o início da pandemia até agora, totalizando 162 vidas perdidas. O aumento de 157% nos óbitos fez com que a média de mortes no município superasse a média de mortes nacional, de 119%, entre os meses de fevereiro e março.