(Ilustração: Ryan Mallett-Outtrim)

Pertencer à “esquerda” na política é defender que a igualdade social é um caminho a ser buscado. É compreender que os seres humanos são iguais (o que não é a mesma coisa de idênticos), isto é, não há ninguém que seja superior a outra pessoa.

No entanto, alguns erros pelo caminho são comuns no campo da esquerda, fazendo com que os seus princípios sejam traídos, desviados, e que o ideal fique cada vez mais longe.

Gostaria de comentar alguns desses pontos.

  1. O Economicismo

O Capitalismo é um sistema econômico no qual os donos da produção — industriais, banqueiros, latifundiários, dentre outros — formam a Burguesia e a população que trabalha compõe o Proletariado. Até então, isso está correto.

Mas, segundo as organizações de esquerda que abraçam o economicismo, tudo para por aí. A cultura, os costumes, os valores, as crenças, são todos consequências da economia. Segundo essa visão, opressões como o machismo ou a LGBTfobia são apenas sintomas do sistema capitalista e, portanto, vão desaparecer quando ele acabar.

Essa visão equivocada ignora a complexidade da sociedade ao adotar uma relação mecânica e simplista de como tudo funciona. A opressão de gênero e sexualidade, apesar de profunda relação com o Capitalismo, é mais antiga e possui um nome próprio: o Patriarcado.

Da mesma forma, o racismo e a xenofobia não dependem da relação patrão-funcionário para existir. Existem setores de extrema direita, incluindo alguns grupos neonazistas, que rejeitam o Capitalismo e ainda sim preservam as estruturas de violência étnica e patriarcal.

Muitas leituras da visão economicista tem a ideia do trabalhador como operário de fábrica, o “proletário ideal”. Assim, tendem a ignorar outros grupos excluídos da sociedade, como a população marginalizada (presidiários, prostitutas), profissionais autônomos ou mesmo a população pobre do campo.

Um projeto socialista e de esquerda precisa abraçar a coletividade contra todas as formas de opressão, reconhecendo que a sociedade é formada por elementos econômicos, mas também políticos e culturais.

2. O Progressismo liberal

Outro erro comum, normal entre a “esquerda moderada”, é abandonar a luta anticapitalista. Segundo essas organizações, o Capitalismo é um mal impossível de ser superado e o máximo que podemos fazer é tentar torná-lo mais “tolerável”.

É importante, antes de mais nada, diferenciar a Socialdemocracia do Social-Liberalismo. A Socialdemocracia quer o Socialismo no longo prazo, mas aos poucos e de forma pacífica. O Social-Liberalismo não quer o fim do Capitalismo, mas manter serviços públicos e programas sociais.

Educação e saúde pública foram defendidas por muitos liberais clássicos. Programas de redistribuição de renda, como o Bolsa-Família, foram propostos por neoliberais como Milton Friedman. É claro que precisam ser defendidos contra quem quer acabar com eles, mas só isso não torna ninguém socialista.

Dessa forma, Luis Inácio Lula da Silva, ex-presidente pelo PT, é tão liberal quanto Marina Silva (REDE), Fernando Henrique Cardoso (PSDB) ou Ciro Gomes (PDT). Ou Barack Obama, do Partido Democrata dos Estados Unidos.

Organizações como Anistia Internacional, Greenpeace ou Oxfam, que buscam melhorar o mundo pedindo que governos e empresas tenham consciência social, também funcionam dentro de uma visão liberal. Não querem o fim do Capitalismo, mas sim que a elite tente ser “boa”.

Nos anos 80, uma teoria conhecida como “pós-estruturalismo” ou “pós-modernidade” ganhou força nas universidades do mundo. Segundo ela, precisamos desistir de pensar a sociedade como um todo e sim focar nas pequenas relações, no cotidiano, no micro. O meio ambiente, por exemplo, não vai ser protegido com uma mudança de sistema, mas com “cada um fazendo sua parte”. Essa visão de mundo focada no indivíduo casa perfeitamente com o mundo individualista liberal que vivemos. Alguns documentos indicam que o crescimento da teoria pós-moderna pode ter sido ajudado pelo financiamento da CIA — serviço secreto dos Estados Unidos — como forma de tornar a esquerda menos socialista e mais liberal.

Uma esquerda liberal é inofensiva ao sistema e, independente do que ela diga, ajuda a preservar toda a opressão e exploração que a maior parte da população mundial sofre.

“The Comrades”: Unidade de Proteção das Mulheres — YPJ no Curdistão Sírio, a União dos Trabalhadores Anarquistas da Guerra Civil Espanhola e o Exército Zapatista de Libertação Nacional no México (Ilustração: Coletivo Lobo de Mar)

3. O Nacionalismo

Getúlio Vargas, no Brasil, muitas vezes é admirado pela esquerda brasileira como um nacionalista que defendeu nosso país. Esquecem-se que ele foi um ditador que prendeu e assassinou milhares de anarquistas e comunistas, enquanto mantinha boas relações com a Itália fascista e a Alemanha nazista.

Isso não é exclusivo nosso. Na Argentina, Juan Domingos Perón é amado. Muitos partidos de esquerda defendem Bashar Al Assad, ditador sírio, ou Vladimir Putin, presidente conservador russo.

É dever da esquerda, em especial socialista, fazer oposição ao Imperialismo norte-americano, que busca colonizar os países mais fracos para a riqueza de sua elite. Mas não podemos esquecer que o Nacionalismo é uma ideologia burguesa, e é capitalista.

Os governos nacionalistas não agem porque querem a igualdade social, mas sim porque querem fortalecer as elites de seu próprio país. A desigualdade internamente continua a reinar. Além disso, apoiar o Nacionalismo muitas vezes faz a esquerda esquecer que sua luta é internacional, e que a população pobre da Rússia e da China é tão vítima quanto a classe trabalhadora dos EUA ou da Inglaterra.

4. O Idealismo

Antes do Anarquismo ou do Marxismo surgirem, vários socialistas apresentavam suas propostas. Robert Owen acreditava que cooperativas poderiam substituir o Capitalismo aos poucos, e Charles Fourier defendia que comunidades alternativas — os Falanstérios — iriam iniciar uma nova sociedade. Para eles, o exemplo de um modelo diferente seria o suficiente para as pessoas se juntarem.

Na prática, nada disso deu certo. Para conseguir vitórias e avanços era necessários enfrentar — muitas vezes de maneira firme — as elites capitalistas.

É necessário, sim, propaganda, luta no campo cultural e a criação de uma nova mentalidade, caso contrário cairíamos no erro dos economicistas. Mas a mudança na forma de pensar também depende do contexto social, e portanto, tem seus limites se for isolada.

Uma batalha exclusivamente cultural acabaria por cair na lógica dos Socialistas Utópicos, ou na recente pós-modernidade. É preciso que a classe trabalhadora faça uma luta mais ampla e em diferentes frentes.

5. Qual caminho a seguir?

Precisamos de um programa revolucionário, que busque construir um novo mundo. Essa sociedade deverá ser socialista, nos libertando da relação de emprego e da tirania dos patrões, mas também democrática, não permitindo que uma ditadura burocrática crie uma nova elite.

Mas, não teremos igualdade verdadeira se não houver a preocupação com a mudança de mentalidade. Novas discussões foram trazidas nas últimas décadas: a libertação feminina, a questão LGBT+, o debate ambiental, a legalização das drogas e do aborto, o enfrentamento ao racismo e ao etnocentrismo. Todas essas discussões — algumas novas, outras nem tanto — precisam ser tratadas de forma honesta e sincera, sempre sendo vistas como complementares — e não rivais — ao projeto socialista.

A superação dos ódios nacionais e a retomada da luta internacional deve continuar sendo uma perspectiva a ser buscada. Ficar atento às armadilhas liberais e burguesas também.

Não teremos uma sociedade igualitária se a classe trabalhadora continuar explorada, nem se a população feminina continuar subjulgada. Não teremos igualdade enquanto a América Latina, a África e a Ásia forem tratadas como quintal do Norte, nem enquanto minorias raciais e étnicas viverem segregadas e perseguidas. Como podemos nos chamar de civilização enquanto pessoas forem mortas por sua sexualidade ou por seu gênero? E como poderemos garantir nossa sobrevivência enquanto destruirmos o planeta Terra?

E a solução só poderá ser coletiva, socialista, e jamais individual e liberal.


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