As opiniões sobre o ensino militar em Bauru. E quais os impactos na educação

Prefeitura de Bauru anunciou adesão a escola civico-militar na cidade; nesta matéria, o Jornal Dois conversa com especialistas para entender quais as vantagens e contradições do ensino proposto

Publicado em 18 de março de 2021

Condições materiais, disponibilidade de recursos e acesso de alunos com perfil socioeconômico alto (vindos de processos seletivos concorridos em colégios militarizados) influencia nos bons resultados, aponta pesquisadores (Arte por Pedro Henrique Furtado em colaboração ao J2)
Por Michel F. Amâncio
Edição Bibiana Garrido

Bauru pode ter uma escola pública cívico-militar ainda em 2021. O projeto foi anunciado pela prefeitura em 15 de fevereiro, em cerimônia com a presença de Suéllen Rosim (Patriota), prefeita, e de Maria do Carmo Kobayashi, secretária de Educação. O evento também contou com a participação dos ministros Milton Ribeiro (Educação) e Marcos Pontes (Ciência, Tecnologia e Inovações).

Os dois ministros vieram a Bauru porque o município foi selecionado em um programa do governo federal para a educação. O Programa Nacional das Escolas Cívico-Militares (Pecim) foi anunciado em 2019, e tem como objetivo a implementação do modelo militarizado de ensino em 216 escolas brasileiras entre 2020 e 2023.

Suéllen Rosim (Patriota), posa ao lado dos ministros Milton Ribeiro e Marcos Pontes, e da Secretária de Educação municipal, Maria do Carmo Kobayashi (Fotos: Thayna Polin/Prefeitura de Bauru)

A proposta do Pecim é de que militares participem da gestão de unidades de ensino público junto a professores e diretores. Os oficiais selecionados terão o papel de colaborar na gestão escolar e educacional, segundo o Ministério da Educação (MEC). Ainda de acordo com o MEC, o funcionamento do programa deve ser baseado em acordos entre o governo federal, estados e municípios.

A depender da parceria firmada, o pagamento dos militares pode ser feito com verba do governo federal, no caso da contratação de militares inativos das Forças Armadas. Ou então pode ficar sob responsabilidade do governo estadual, nos casos em que militares da Segurança Pública (policiais, bombeiros) forem contratados para as escolas.

A execução do programa faz parte das promessas de campanha do presidente Jair Bolsonaro (então PSL, hoje sem partido), defensor da ideia de que escolas administradas por militares possuem desempenho acima da média nacional em avaliações. O ministro da educação, durante o evento de anúncio em Bauru, citou como exemplo de sucesso o estado de Goiás, que tem um dos maiores números de escolas cívico-militares do país. Segundo Ribeiro, esse é o motivo pelo qual o estado é bem colocado na avaliação do Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb).

Mapa do Brasil com a distribuição de escolas militarizadas (Arte: Michel F. Amâncio)
E o desempenho? O caso do estado de Goiás

O estado de Goiás tem apresentado melhorias nas últimas avaliações do Ideb, com destaque para o ensino médio público. Especialistas apontam que os bons resultados não são obrigatoriamente uma consequência do modelo militarizado. As condições materiais, a disponibilidade de recursos e o acesso de alunos com perfil socioeconômico alto (vindos de processos seletivos concorridos em colégios militarizados) têm “grande influência” nos bons resultados das escolas públicas goianas nos últimos anos. É o que apontam Daniel Pinheiro, Rafael Pereira e Geruza Sabino, pesquisadores do tema.

“Os resultados [das escolas militarizadas] não necessariamente podem ser atribuídos ao ‘êxito’ ou à ‘fórmula pedagógica’, mas às condições que são oferecidas, já que as colocam em vantagem frente às demais escolas públicas”, afirmam os cientistas em pesquisa de 2019.

Miriam Fábia Alves é professora e questiona, entrevista ao Jornal Dois, a correlação feita pelo ministro da Educação em Bauru, de que os bons resultados da rede pública dependem da adoção do modelo militarizado: “Essas escolas têm de fato alcançado bons resultados, mas elas não diferem das melhores escolas que a rede tem, nem mesmo dos institutos federais”.

Doutora em educação com experiência no tema da militarização de escolas públicas e atuante na diretoria da Associação Nacional de Pesquisa em Educação (ANPEd), Miriam também é docente da Universidade Federal de Goiás (UFG), no estado citado pelo ministro Ribeiro como exemplo de sucesso na militarização.

“Essas escolas [militarizadas] passam, pelo menos é o caso aqui em Goiás, por uma verdadeira transformação em sua infraestrutura, seus laboratórios, suas quadras de esporte. Consequentemente, tudo isso tem impacto no seu desempenho. Então só dizer que militarizar melhora o desempenho não é verdadeiro”, explica a professora.

Critério de qualidade

Ainda que os resultados em avaliações como o Enem e o Ideb sejam importantes, especialistas problematizam a ideia de que a “educação de qualidade” seja baseada exclusivamente em testes quantitativos.

Miriam destaca que “existem muitas pesquisas indicando que esses testes não dão conta da realidade”, e que as autoridades públicas ainda assim insistem “que eles são o único jeito de aferir qualidade”. A professora também cita o exemplo dos Estados Unidos, onde “já há estudos demonstrando a falência do sistema educacional americano que está pautado nesse modelo quantitativo, padronizado”.

“Essa forma de avaliação desconsidera toda a diversidade do país, toda a diversidade cultural, linguística, desconsidera as brutais desigualdades sociais e também educacionais”, sustenta a professora.

Rudá Ricci, sociólogo e doutor em Ciências Sociais que preside a ONG de educação Instituto Cultiva, afirma ao J2 que a “educação é relação social, não é máquina, tecnologia ou planilhas”. E complementa sua crítica em relação às escolas militarizadas: “A educação brasileira precisa parar de criar pacotes, copiar a moda estrangeira do momento e começar a se voltar para os seres humanos”.

Apoio de pais, mães e responsáveis

Na postagem da prefeita Suéllen Rosim (Patriota) nas redes sociais sobre a escola cívico-militar em Bauru, é possível notar diferentes reações de cidadãos bauruenses. São, até o momento da publicação desta reportagem, pouco mais de 2 mil comentários em sua página no Facebook, distribuídos entre críticas e elogios ao projeto. Alguns desses comentários defendem que o modelo militarizado é importante para o município, o que se vê no apoio de Andrade Correia: “parabéns a todos os envolvidos… Bauru precisa de uma escola militar”.

Há também manifestações de responsáveis que anseiam matricular os filhos em uma escola cívico-militar: “eu prefiro colocar meu filho numa escola onde existe ordem e respeito do que numa escola onde ele sai da aula, tem briga dentro da instalação, alunos fumando droga escondido e atos de vandalismo”, comenta o apoiador Victor Nascimento.

Miriam acredita que a mídia exibe em excesso imagens de violência nas escolas, o que “tem gerado muito medo por parte de pais e mães.” E justifica: “a escola tem sim problema com a violência, essa sociedade tem problemas com isso, mas a escola não é o lugar mais violento”. De acordo com Miriam, “se constrói uma narrativa, como se a violência fosse algo tão brutal dentro da escola que é preciso que os policiais assumam o controle”.

A professora argumenta que a adesão de pais e mães a esse modelo tem relação direta com a presença de valores conservadores na sociedade: “coisas que nós alguns anos atrás julgávamos impossíveis, como pedidos por intervenção militar, a gente tem acompanhado no Brasil nos últimos anos. Então a educação não é uma ilha, ela também está nesse contexto”.

Também questionado sobre as razões que levam os responsáveis a apoiar esse projeto, Rudá pondera: “Aqui, deixamos os pais à sua própria sorte. O que eles podem fazer? Como podem reagir? Sabem que militares são duros, disciplinadores. Mas, não sabem que eles não sabem educar crianças e adolescentes”.

Autonomia e individualidade de crianças e adolescentes

O presidente Jair Bolsonaro (sem partido) exalta a disciplina exigida nos colégios cívico-militares. Em sua opinião, a disciplina e hierarquia estão por trás dos índices de qualidade atingidos pelas escolas militarizadas. É também a opinião de Walter de Oliveira, responsável administrativo do Colégio da Polícia Militar de Bauru, quando entrevistado pelo J2 em 2018:

“O jovem começa desde o início a perceber que existem instituições, existem valores que são muito importantes pra convivência em sociedade. O apego à ordem e à disciplina são fundamentais. Esse respeito às instituições e às leis fazem com que o indivíduo se torne um cidadão melhor”, argumenta Walter.

Na mesma reportagem, Diego Murakami, aluno da Escola Pré-Militar da cidade à época, exalta como a ordem e a disciplina da instituição mudaram seu comportamento: “Agora eu tenho muito mais seriedade. Antes eu ficava andando num grupo de amigos e ficava zuando, dando risada. Hoje quando tem muita gente eu ando mais afastado, ouvindo música”, disse à época. 

O Colégio da Polícia Militar, financiado pela associação filantrópica Cruz Azul, está com as atividades suspensas atualmente devido a problemas financeiros e baixo número de estudantes matriculados. A Escola Pré-Militar continua em funcionamento. Apesar das diferenças entre essas instituições privadas, ambas são baseadas nos valores militares aplicados no dia a dia dos estudantes.

No caso da proposta do Pecim para Bauru, a disciplina militar no ensino público regulamenta comportamentos de estudantes por meio de imposições e normas regimentais, que estão no manual das escolas cívico-militares no Brasil. O documento foi distribuído a partir de 2020 para as secretarias estaduais de Educação, e só foi aberto ao público quando a plataforma “Fiquem Sabendo” solicitou o arquivo através da Lei de Acesso à Informação (LAI).

Há obrigatoriedade do uso de uniformes de padrão militar, além da exigência de penteados e cortes de cabelo restritos para meninos e meninas, como é mostrado na imagem abaixo. O documento pode ser acessado na íntegra por aqui.

Trecho do Manual de Escolas Cívico-Militares

Rudá e Miriam discordam dessa abordagem. Segundo a professora, “o modelo que se quer formar de cidadãos é o modelo do soldado obediente, daquele pronto para o ‘sim senhor’ e ‘não senhor’, o que é totalmente contrário a uma perspectiva de formação de cidadania, de sujeitos atuantes na sociedade”.

O sociólogo é categórico ao afirmar que “educação não é instrução”. De acordo com o professor, “quando dizemos que uma pessoa é educada, não estamos dizendo que ela não masca chicletes ou não pinta as unhas, estamos dizendo que ele sabe conviver com os outros e que tem autonomia, que sabe seu lugar no mundo e toma decisões.” E adverte que “repetir o que outros impõem não educa porque se apoia no medo, no temor. Isso pode ser tudo, menos educação”.

Consequências da militarização e alternativas para o ensino brasileiro

Os especialistas ouvidos pela reportagem concluem que o processo de militarização de escolas públicas no Brasil é “preocupante”. Segundo Miriam, o modelo militar contribui para a “formação de um povo cada vez mais acrítico, de cidadãos cada vez mais passivos, de pessoas cada vez mais manipuláveis, pessoas com cada vez menos visão de mundo”.

A militarização das escolas “com certeza tem impacto profundo, além, é óbvio, de trazer prejuízos pra escola pública, sua desvalorização e o desrespeito ao trabalho docente”, assegura a professora.

Para Rudá, “a saída para a educação brasileira é o vínculo escola-família, não os rituais de hierarquia e comando militares”. Questionado sobre modelos alternativos que trabalhem com esse vínculo, o professor cita o programa Comunidades Educadoras, projeto do Instituto Cultiva “destacado pela Unesco como uma das 16 experiências mais exitosas do mundo”.

Posição da Apeoesp 

O governador João Doria (PSDB) anunciou em 8 de janeiro que o estado de São Paulo deveria aderir ao Programa Nacional das Escolas Cívico-Militares (Pecim). As autoridades municipais de todo o país tiveram até o dia 5 de fevereiro para manifestar interesse no programa. No estado de São Paulo, ocorreram consultas em escolas públicas para que professores opinassem sobre a militarização do ensino básico.

Diante do quadro estadual, o Sindicato dos Professores do Ensino Oficial do Estado de São Paulo (Apeoesp) se manifestou de forma contrária à implementação do modelo.

“Esse modelo educacional se caracteriza pelo autoritarismo e pela exclusão de estudantes e professores que a ele não se ajustam, ferindo assim o caráter universal da escola pública”, declarou o sindicato, em nota, no dia 2 de fevereiro.

A Apeoesp orientou professores e professoras da rede de ensino do estado a “tomarem posição contra essa adesão na consulta que está sendo realizada nas escolas estaduais”. Em resposta ao J2, a subsede da Apeoesp em Bauru também se colocou “totalmente contrária a este modelo de escola”.

Diferenças entre escolas cívico-militares e colégios militares

Os dois modelos recebem recursos do Ministério da Educação e do Ministério da Defesa. As escolas cívico-militares se inspiram nos colégios militares, adotando o sistema de hierarquias e a disciplina militar. Ainda assim, há algumas diferenças importantes entre os tipos de instituições.

Os colégios militares permitem que militares deem aulas e determinem currículo e projeto pedagógico. Já o modelo cívico-militar propõe uma gestão compartilhada entre militares e equipe de professores, onde, na teoria, não deve haver interferência militar na parte pedagógica.

Profissionais da educação argumentam que a militarização pode abrir caminho para a censura no ambiente escolar ao misturar prática pedagógica com militarismo. “O que nós temos de dados nos informa que a polícia altera sim o cotidiano escolar, altera e limita a prática pedagógica, a autonomia docente”, afirma Miriam.

Outra diferença é que nos colégios militares são comuns processos seletivos, cobrança de taxas de matrícula e mensalidade, e os estudantes geralmente arcam com o custo do fardamento militar. Já as escolas cívico-militares, segundo o manual do Ministério da Educação, devem ser gratuitas e independentes de processo seletivo para a matrícula.

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