Por Ana Carolina Moraes


Encontrei a Lunna no domingo, na Estação Ferroviária. Ela veio para Bauru com a equipe do Tv Nas Ruas, um canal de cultura e entretenimento de artistas da periferia. Veio gravar com o pessoal da Casa do Hip Hop e também videoclipe. Nosso encontro foi na Casa do Hip Hop, ali no primeiro andar do prédio da Estação, numa dessas manhãs quentes de Bauru.

Percursora do movimento de Mulheres no Hip Hop, sócia-fundadora de uma produtora cultural e mãe. (Foto: Lunna Rabetti/ Redes Sociais)

Luana Rabetti é conhecida como Lunna há uns 15 anos. Ela é presidente da Frente Nacional de Mulheres no Hip Hop, rapper, produtora cultural. Antes de conhecer movimento de mulheres, ela contou que não se entendia como mulher, mesmo fazendo várias coisas para a valorização da mulheres nas produções artísticas.

“Na pré-escola eu tive um problema…” ela faz uma pausa para respirar, diz que se emociona, e conta que na sala de aula era a única considerada preta. E tinha uma professora que se recusava dar aulas para pessoas negras. “Então ela não admitia que tivesse estudantes negros da sala. Só que a diretora me considerou branca e me colocou lá. E o que ela fez? Ela me pegou para Cristo, é como fala né?”, explica.

“Ela arrastava o armário que tinha no fundo da sala, e me colocava atrás do armário, e eu tinha que ficar fazendo lição assim, não dava tempo de copiar… Isso me transformou numa adolescente tímida, envergonhada, que não gostava do cabelo, do corpo. Eu tive uma série de problemas na adolescência por conta disso.”

E foi o Hip Hop que proporcionou a construção da identidade feminina — e feminista — dela. “Eu tinha 14 anos em, 1994, quando comecei a trabalhar como recepcionista de uma academia. Lá tinha o pessoal que dançava break e eu comecei a me envolver com eles, passei a dançar também e foi o primeiro contato que tive com o movimento hip hop”, conta.

Como o movimento de ajudou a construir a Lunna?

Ela fala que quando foi trabalhar nessa academia era muito tímida, e teve que aprender a se soltar. “Então quando começou a dança de rua, eu via o pessoal lá, aquilo me chamou e eu comecei a expressar através da dança. Porque o break ele traz essa expressão, você fala com o corpo. Foi a primeira vez que eu comecei a me soltar”, declara.

Do break, Lunna começou a curtir rap, mas pareceia que eu algo não estava muito certo. Ela curtia as letras, a batida, mas faltava algo. “Não se sentia contemplada nas falas e isso era porque não tinha mulheres rappers”, explica. O incomodo motivou a formação do primeiro grupo de rap feminino dela, o Consciência Feminina, que passou a representar as mulheres neste elemento.

“Naquela época, eu era muito masculinizada”, fala. “Eu usava calça larga para tá inserida dentro do movimento Hip Hop. Eu só andava com os manos. As minhas letras, mesmo, eu só falava no masculino. Não fala no feminino, porque eu queria que eles cantassem as músicas que eu estava escrevendo. Eu não tinha essa consciência do feminismo, de me inserir como mulher no movimento. Eu fazia o que eu achava que ia agradar os manos”.

E ainda sim, com o grupo formado, com essa preocupação em cantar coisas que fizessem as pessoas se identificarem, artigos no masculino… elas não conseguiam espaço para se apresentarem. Ela me que conta que o grupo não recebia convites para participar de eventos, que sempre estavam com a grade fechada. “Aí a gente começou a ir pro embate”, falou enquanto se lembrava do que fazia para subir nos palcos:

“Começamos a invadir os eventos; a DJ já ia como o CD, subíamos no palco e pegávamos, no vacilo, o microfone, colocava o disco, já saia cantando. Passamos a ser conhecida por meter o pé na porta e cantar”.

Resultado: o Consciência Feminina começou a ser convidado para os eventos para evitar que isso se repetisse. Mas, apesar de participar das atividades, o nome delas ou do grupo nunca apareciam nos materiais de divulgação. “O nome do grupo não saia no evento, era sempre o “e outros”. A Lunna rapper não existiu por conta dessa invisibilidade, não tinha como montar um portfólio”, lamenta.

“Não sou feminista, sou feminina”

Depois tantos corres para se colocar no universo do Hip Hop e perceber o silenciamento que as minas sofriam, Lunna e um grupo de mulheres decidiram criar um portal para visibilizar as produções femininas na cultura. O portal Mulheres no Hip Hop nasceu em 2004 e mostrou a riqueza, a variedade de trabalhos que eram invisibilizados e estavam por todo Brasil.

“Quando eu comecei a perceber que, por eu ser mulher, pelo meu grupo ser feminino, que rolava a invisibilidade, eu entendi a questão do feminismo. E aí quando eu comecei a trocar ideia com outras mulheres, por meio do portal, é que eu percebi que todas nós estávamos sofrendo essa invisibilidade dentro do movimento Hip Hop. Antes eu falava “não sou feminista, sou feminina”. E a partir daí eu comecei a me reconhecer como mulher dentro do Hip Hop”, comenta.

A troca de experiência e de ideias pela internet foi tão intensa na época, que criou a necessidade de um encontro físico. E ele aconteceu.

Lunna e outras mulheres escreveram um projeto para o Programa Ação Cultural (PROAC) e foram contempladas pelo edital para realizarem o encontro. O 1º Fórum Nacional de Mulheres no Hip Hop aconteceu em 2010 em Carapicuíba. “Nesse espaço que nós se vimos na outra, percebemos que nossos problemas eram muito semelhantes, as dificuldades, né. O diálogo foi muito importante”, relembra a rapper.

Lunna Rabetti durante o 1º Fórum de Mulheres no Hip Hop em 2010. (Foto: Lunna Rabetti/ Redes Sociais)

O encontrou reuniu mulheres de oito estados brasileiros, e a partir dele, foi feito uma carta de intenções para ser entregue às esferas governamentais. “Um dos itens era a fundação da Frente Nacional de Mulheres no Hip Hop, para que a gente pudesse, em rede, dar andamento nisso”, explica. A rede foi fundada com 8 estados em 2010 mesmo; no ano seguinte alcançou o dobro de estados, e hoje 17 estados fazem parte da Frente Nacional de Mulheres no Hip Hop. De lá para cá, cinco Fóruns já foram realizados, cada um com temática diferente que dialoga com a realidade das mulheres no movimento.

2 livros, mais de 90 autoras, 11 países

A história das mulheres no hip hop estava acontecendo, mas o material para registrar tudo o que tava rolando ainda não existia. “A gente não se via nos livros sobre cultura Hip Hop”, desabafa. Isso motivou a produção de um livro sobre as trajetórias dessas mulheres, que há mais 30 anos estão na correria para fazer a participação feminina acontecer. A primeira edição do livro Perifeminas — Nossa história, em 2013, juntou 63 autoras do Brasil todo e estorou!

Primeira edição do Perifeminas, publicado em 2013. (Foto: Reprodução)

O livro foi o primeiro a fazer o recorte de gênero no movimento, vazou para o exterior, e elas passaram a receber solicitações de outros países para saber o que era o movimento, pedindo para que enviasse o material. O sucesso foi tanto que fortaleceu a produção de uma nova edição, o Perifeminas – Sem Fronteiras. Com a participação de 11 países, tradução em cada idioma e em português, o livro reúne narrativas de mulheres que enfrentam as mesmas dificuldades em contextos diferentes, em formatos livres — poesias, autobiografias por exemplo. “E a gente tá aí para finalizar o terceiro, o quarto, o quinto, o sexto, enquanto tiver mulheres querendo se expressar, a gente vai estar fazendo”, diz.

Representatividade

Rede de mulheres criada, história registrada e sendo disseminada… Mas ainda tava faltando alguma coisa.

“A gente percebeu que a maioria das mulheres envolvidas estavam acima dos 20, 25… 30 anos. Então tomamos a decisão de fazer formação, que a gente percebeu que o movimento Hip Hop também essa deficiência de fazer a formação”, conta.

Assim começou o projeto Mulheres Multiplicando a Cultura, que leva os elementos da cultura Hip Hop (break, MC, graffitti, DJ e o conhecimento) para as meninas.

A Lunna também é sócia-fundadora de uma empresa de produções culturais, formada por quatro mulheres pretas, que busca trazer este recorte — da mulher negra — para os grupos artísticos que elas convidam. “No ano passado a gente trouxe um grupo dos Estados Unidos, que chama Oxum, são duas mulheres negras que cantam a ancestralidade nas letras, nos instrumentais e tudo mais, para o SESC, que é um espaço mais acessível para população participar. E a gente conseguiu um dia de bate-papo de graça para as mulheres negras e do Hip Hop, porque a gente pensa nessa questão, na representatividade”, relata.

Bastidores

A Lunna é mãe da DJ Niely, de 15, e de um menino de cinco meses. No meio da conversa sobre sua trajetória, ela fala da importância de ser mãe e mulher que conhece e se reconhece nos espaços que participa. Lunna conta que, desde pequena, a filha foi inserida nos debates que participava e que isso reflete no aprendizado dela na escola. “Quando uma professora de sociologia entra em questão sobre o aborto, por exemplo, a sala inteira diz “não, sou contra, sou contra”, e ela fala “não, sou a favor”, e vai, argumenta e discute”.

O cuidado agora é com a educação do mais novo. Ela explica que “a educação dele vai ser toda voltada para que ele não cresça sendo machista, para que tenha esse olhar do respeito e dos direitos iguais”.

O que é ser uma mulher que luta?

Sem hesitar, Lunna me responde que ser mulher que luta é não aceitar o que a sociedade impõe, o que os costumes impõem, o que a colonização impôs. “Ser uma mulher de luta é estar constantemente na desconstrução”, declara. E conclui: “a minha vida é toda em volta dessa questão da luta da mulher dentro da cena do Brasil”.