Doação de um bilhão: a sociedade brasileira não agradece

Diferentemente da renda do trabalhador, do cidadão de classe média, as pessoas que recebem lucros e dividendos não precisam recolher imposto no Brasil

Publicado em 24 de abril de 2020

Em 2019 o lucro líquido do banco Itaú foi de 28 bilhões de reais (Colagem: Lucas Zanetti / Jornal Dois, sobre 1. Piero Dorazio, Ex Tempore II, 1963 Oil on canvas, 16 1/10 × 13 in41 × 33 cm, Beck & Eggeling)
Por Juliana C. Pasqualini *, em coluna para o J2

Evidentemente, o 1 bilhão de reais doado pelo Banco Itaú será muito bem-vindo ao esforço social de combate e mitigação dos efeitos da pandemia de Covid-19 no território nacional.

Antes de agradecer ingenuamente a generosidade dessa renomada instituição bancária, há uma pergunta que não pode deixar de ser feita: por que precisamos de doações?

Em release divulgado à imprensa em 10 de fevereiro de 2020, o banco informou seu lucro líquido em 2019. 28 bilhões de reais. Em um ano. Líquido.

Segundo o Portal G1 de notícias, isso significa que foram distribuídos entre os acionistas 18 bilhões e 800 milhões de reais em dividendos e juros. O resultado representou um crescimento de 6,4% na comparação com o ano anterior.

Isso mesmo. Em 2019, ano em que a economia patinou, o desemprego manteve-se na casa dos doze milhões de pessoas, bolsas de estudo da pós-graduação foram drasticamente reduzidas, dinheiro foi retirado da Assistência Social, o lucro líquido do Banco Itaú cresceu 6,4%. Chegou a vinte e oito bilhões de reais.

Diferentemente da renda do trabalhador, do cidadão de classe média, as pessoas que receberem esse dinheiro não terão de recolher imposto.

Lucros e dividendos são isentos de tributação sobre a renda no Brasil. Essa é uma prática que destoa do resto do mundo. Se consideradas as alíquotas vigentes em 2015, a média de tributação sobre os lucros nos 34 países da OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico) é de 43,1%. O nosso é zero. O Brasil é uma grande exceção também se olharmos para outros países chamados “em desenvolvimento”.

Sabe, leitor qual, a conclusão a que chegaram pesquisadores do Centro Internacional de Políticas para o Crescimento Inclusivo da ONU? Que o Brasil é um paraíso tributário para os super-ricos. Isso porque aqui vige um nível baixo de tributação sobre aplicações financeiras, uma das mais elevadas taxas de juros do planeta e “uma prática pouco comum de isentar a distribuição de dividendos de imposto de renda na pessoa física”.

Um estudo divulgado em 2019 pelo IPEA (Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas) calcula que se fosse estabelecida uma tributação de 15% sobre lucros e dividendos o Brasil poderia recolher 22 bilhões de reais ao ano. Já com um índice de 27,5%, chegaríamos a 39 bilhões de reais anuais. Ultrapassaríamos – vejam só! – o lucro anual do Itaú.

Grandes fortunas

O imposto sobre grandes fortunas, que poderá vir a ser instituído por projeto de lei que encontra-se no Senado, se incidir sobre patrimônios líquidos superiores a 22,8 milhões de reais com alíquotas variando de 0,5 a 1%, poderá, como informa a Agência Brasil, arrecadar anualmente 70 a 80 bilhões de reais.

A implementação desse imposto depende de sua aprovação no Parlamento, mas também da sanção pelo presidente da República, que já se manifestou publicamente contrário a essa medida, e tem o poder de veto. Vale ressaltar que quando falamos em grandes fortunas estamos tratando aqui de patrimônios superiores a 22 milhões de reais. Taxar menos de 3% da população ajudaria a socorrer 97% de nós.

Em um cenário de arrecadação tão mais expressiva como a que aventamos até aqui, talvez não precisássemos de doações para manter nosso sistema de saúde, nem mesmo em situações excepcionais como essa que ora enfrentamos.

A dívida pública

Mas ainda não falamos do sistema da dívida pública. Essa, aliás, uma ótima dica para a quarentena: aprender sobre dívida pública e compreender aquilo que a equipe da Auditoria Cidadã da Dívida vem denunciando incansavelmente.

Os bancos espoliam o país – há décadas – pelo mecanismo de manipulação de títulos públicos. E pela remuneração diária da sobra de caixa. Todo ano, quase a metade dos recursos do Orçamento Geral da União é destinada para pagar juros e amortização da dívida, incluindo transações obscuras e de procedência não conhecida. Mais de 40% do orçamento.

Com Saúde gastamos menos de 5%. Repetimos, com Maria Lúcia Fatorelli: “a dívida pública é um mega-esquema de corrupção institucionalizado”. Tão verdadeira é essa acusação que até hoje não se conseguiu aprovar a realização de uma auditoria da dívida, dispositivo previsto na Constituição Federal.

Quem são os principais beneficiados desse sistema que sangra os recursos que deveriam estar sendo investidos para atender as necessidades básicas e mais fundamentais do nosso sofrido povo brasileiro? Não surpreendentemente, bancos e instituições financeiras.

Por isso, aceitamos a doação de 1 bilhão de reais. Esse valor certamente fará diferença para o país no enfrentamento da pandemia, e não causará maiores desfalques ao maior banco privado da América Latina, que conta com um patrimônio de muitas dezenas de bilhões de reais. Até porque o Banco Central já anunciou um pacote de ajuda aos bancos que soma R$ 1,216 trilhão.

Aceitamos a doação de 1 bilhão. Alertamos, entretanto, que não espere, o Itaú, nossa gratidão.

Não queremos doação. Queremos taxação de grandes fortunas, lucros e dividendos. Queremos auditoria da dívida pública. O que queremos, a massa trabalhadora brasileira, é “no nosso destino mandar”.

* Juliana C. Pasqualini é psicóloga, doutora em Educação Escolar e docente do Departamento de Psicologia da UNESP/Bauru

As colunas são um espaço de opinião. Posições e argumentos expressos neste espaço não necessariamente refletem o ponto de vista do Jornal Dois.
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