“Isso é caso de polícia, mas você é a polícia”. Quando um policial enfrenta a instituição

Anderson quebrou os dois joelhos em treinamento da PM. Oito anos depois e ainda sem tratamento, ele pode ser demitido

Publicado em 2 de novembro de 2018

Por Bibiana Garrido

“Cada vez que minha mãe vê meu processo, ela chora. ‘Anderson, o seu caso é caso de polícia. Só que você é a polícia, então o que é que eu vou fazer agora?’. Me ver passando por essa situação, e ela já é de idade, isso não tá certo. Todos vão pagar na justiça. Isso vai ser mostrado e todos vão ter sua parcela de culpa por tudo o que vem fazendo. Não foi isso que eu aprendi na PM. Não aprendi a ser assim”.

Uma dose de morfina a cada 12 horas. É o que Anderson precisa para aliviar a dor da lesão que não tem mais cura (Foto: Arquivo Pessoal/Reprodução)

Estou sentada na escadaria do Parque Vitória Régia, Bauru, coração do estado de São Paulo, à espera de Anderson Luiz dos Santos. Policial militar, 39 anos, homem negro, alto e forte — constato, quando o vejo se aproximar de muletas, camiseta branca e calça jeans. Um pouco da história eu já sabia. Quebrou os dois joelhos em serviço e luta para conseguir um tratamento desde então. O acidente foi há 8, quase 9 anos; a lesão evoluiu para um quadro irreversível.

Anderson conseguiu doze documentos, entre laudos médicos e perícias, que comprovam a invalidez de suas pernas. Não foram o suficiente. Hoje enfrenta um processo de demissão dentro da Polícia Militar. Depois de anos tentando provar a gravidade da sua lesão, depois de passar por situações em que foi desacreditado em consultas médicas, processos e julgamentos, a única resposta a que consegue chegar é: “só pode ser pela minha cor”.

A seguir, o seu relato, as provas, e o que diz a instituição.

Primeiro da família

O sonho era de uma criança que não via a hora de chegar a maioridade para fazer o Tiro de Guerra. “Quando fui aprovado no TG foi uma felicidade”, diz Anderson, que não esconde sua admiração pela área. Pouco antes, com catorze anos, conseguiu o primeiro trabalho como jovem aprendiz. Só saiu de lá quando passou no concurso da Polícia Militar, aos 29. “Nada na vida foi fácil, meu pai tinha falecido e não chegou a me ver com o uniforme. Mesmo com todas as dificuldades, pra mim foi espetacular quando passei na polícia. Fui o primeiro militar da família”.

Aos 30, treinando algemamento no curso da polícia, sofreu o acidente que quebrou rótulas, ligamentos e meniscos dos seus dois joelhos. Era segurado por outros dois PMs que praticavam a técnica, quando aplicaram um golpe de imobilização. “Não houve dolo ou culpa da parte deles”, assegura.

Foi atendido com os primeiros socorros necessários e encaminhado ao Hospital da Polícia Militar em São Paulo. De volta à Bauru, ficou semanas enfaixado e de repouso na cama. Não foi operado na época e seguiu trabalhando, remanejado para funções internas.

“A única coisa que foi errada nisso é que não me deram o Atestado de Origem [AO], que é o documento que comprova a lesão em serviço. O capitão da minha companhia tinha me orientado a ir atrás, porque depois eu poderia ter problemas. Mas o médico da polícia disse que não era necessário”. Na falta do AO, um processo interno — sindicância, foi aberto em 2011.

Assim diz o 2° Tenente PM Fernando Aoyama Achiles, na página 110 do relatório: “No caso do Sd [soldado] PM Anderson na época dos fatos não houve AO assim esta sindicância se fez necessária conforme relatório anterior e análise de provas, há claras evidências que o mesmo se lesionou em serviço”. Depois do atestado, Anderson conseguiu liberação para a cirurgia, realizada quase dois anos após a fratura. Foram quatro pinos colocados em cada joelho.

Os fatos ao longo dos anos; história que começou em 2009 e ainda não terminou (Linha do tempo: Bibiana Garrido/JORNALDOIS e KnightLab)

O mesmo tenente, seis anos depois, iria depor contra Anderson em um processo de demissão que foi aberto em 2017. Na ocasião, disse que não seria possível concluir que a doença do policial é consequência da lesão sofrida em serviço.

Uniforme, muletas e consultas

Feita a cirurgia em 2011, Anderson seguiu um tratamento com fisioterapeuta até 2015. De Bauru, os médicos ortopedistas Dr. Antônio de Oliveira Vargas, Dr. Anderson Monteiro, Dr. Rogério R. C. Amaral e Dr. Luis Fernando B. B. Antunes, atenderam o policial entre 2015 e 2017. Todos declaram em documentos o “quadro definitivo”, a “incapacitação” e a “invalidez parcial e permanente” sendo avaliada no grau máximo (75%) para os joelhos.

Em relatório médico para fins trabalhistas de 2017, o Dr. Rogério afirma que “o paciente está evoluindo com gonartrose pós-traumática”. Uma “lesão degenerativa de caráter definitivo, sem prognóstico de melhora com novo tratamento cirúrgico”.

“O tratamento que eu tenho agora é somente paliativo, com morfina receitada pela própria PM”, conta Anderson, mostrando as receitas. De 12 em 12 horas ele toma Tramal, um derivado de morfina.

Em 2015, a empresa MetLife, seguradora da Polícia Militar, veio até Bauru com três peritos médicos ortopedistas para avaliar Anderson — por solicitação dele. Constatou-se a invalidez e a gravidade da lesão, fator pelo qual lhe pagaram uma indenização de R$ 20 mil. Dos médicos da Polícia Militar em São Paulo, são seis documentos que analisam a gravidade do caso. Um dos mais recentes, de 2018, conclui situação de “incapacidade física”.

À esquerda, declaração do Dr. Rogério; ao meio, da seguradora da PM; e à direita de médico da PM identificado como Rafael (Fotos: Arquivo Pessoal/Reprodução)

Anderson já chegou a cair, de muletas, nas escadas de prédios da polícia em um dia em que o elevador para deficientes físicos estava desativado. Documentou o ocorrido com fotos que mostram seu rosto machucado e sangrando. Por respeito ao leitor e à leitora, a equipe do JORNAL DOIS evita a divulgação desse tipo de material.

Para Joice dos Santos, advogada de Anderson, o processo não está acontecendo de maneira justa. “Você não imagina as arbitrariedades que acontecem dentro da polícia. O Soldado PM Anderson foi declarado inválido pela Própria Seguradora da Polícia Militar, e se encontra inapto pela Própria Junta médica do Centro Médico da Polícia Militar do Estado de São Paulo (HPM)”.

Dúvidas, acusações e bilhetes entre doutores

A Lei Complementar n° 1.305 de 20 de setembro de 2017, em seu artigo 29, apresenta: “A reforma será aplicada ao militar que: (…) VI — for declarado inválido ou fisicamente incapaz para o serviço ativo em caráter permanente”. Mesmo atestada a invalidez e ausência de cura, a aposentadoria não foi concedida para Anderson.

Em 2016, uma segunda sindicância da Polícia Militar foi aberta e resultou no Processo Administrativo Disciplinar (PAD) n° CPI4–001/13/17, de 2017, que pede a demissão de Anderson. A justificativa apresentada é que “o acusado tenta ludibriar a Administração Pública”, afirmando “possuir maior grau de dificuldade física do que efetivamente possui, ’em tese’ causada pro acidente em serviço”, consta na página 17 do documento.

O processo se espalhou nos corredores da PM e pode ter influenciado o comportamento dos médicos. Em 2017, depois de atender Anderson, Fabiano M. de Freitas mandou um bilhete para médica que acompanharia o caso:

À esquerda, o relatório da consulta, um asterisco e uma seta com a palavra “vire”; à direita, no verso da folha: “há suspeita de que o paciente possa estar respondendo a processo administrativo tenha se obtido da via de medicação para se beneficiar de afastamento” (Fotos: Arquivo Pessoal/Reprodução)

Em depoimento, Fabiano reconhece sua letra e afirma que estava comunicando “fatos administrativos e judiciais” de profissional para profissional. Ocorre que o processo citado no bilhete nunca existiu. Anderson não tem nenhuma pendência jurídica sobre o uso indevido de medicação, como escrito pelo médico.

“Isso contaminou toda minha ida ao HPM”, lembra o policial lesionado. “Antes de eu consultar, eu já vou como se tivesse um X marcado dizendo que sou vagabundo. Tá tudo errado. Não vem falar para mim que é normal. Pela própria ética médica, ele não poderia fazer isso. Ele não pode falar algo que não está acontecendo, e mesmo que fosse uma informação verdadeira, ele não poderia quebrar o sigilo entre médico e paciente”.

Questionada pela reportagem do JORNAL DOIS, a Polícia Militar não autorizou a realização de entrevistas, e enviou uma nota.

A Polícia Militar esclarece que o Sd PM Anderson foi acusado em processo administrativo disciplinar, de tentar ludibriar a Administração Pública por afirmar possuir maior grau de dificuldade física do que efetivamente possui, alegando ser portador de comorbidade grave, que lhe obrigaria ao uso de muletas, contudo, foi surpreendido em mais de uma oportunidade caminhando normalmente, sem fazer o uso do instrumento de apoio (muleta). No processo administrativo, que se encontra em andamento, foi assegurada ampla oportunidade de defesa ao policial militar. O Sd PM Anderson, ajuizou, em face da Fazenda Pública, ação “Declaratória de Invalidez”, cumulada com pedido de “Transferência para a Reserva” e de “Promoção ao Posto Imediato”, alegando estar impedido de realizar simples atividades diárias e de exercer as atividades atribuídas à função de Policial Militar. A ação foi julgada improcedente.

Anderson foi visto em 2015 e 2016 caminhando sem auxílio das muletas pelos Tenentes PMs Fernando Aoyama Achiles e Rafael Nunes Vaz de Oliveira. Ambos depõem a favor da demissão do policial.

“Uma coisa que a polícia pegava muito é por causa da minha muleta. Porque eu tenho quatro parafusos em cada perna, então no dia que minha lesão tá com uma dor que eu não suporto, eu uso”, diz Anderson.

Em julho de 2018, o Tenente PM Robson Ferrari Dias Soares, concluiu pelo arquivamento do processo “diante da inexistência de elementos comprobatórios” contra o policial acusado. A decisão seguiria para o Comando de Policiamento do Interior 4 (CPI-4), em Bauru.

Na cidade, o Coronel Robson Douglas foi contrário ao arquivamento e voltou a pedir a demissão de Anderson com os mesmos argumentos apresentados quando da abertura do processo. “Ele fez um relatório opinando pela parte dele, mas ele acabou de chegar, nem conhece o Anderson”, afirma a advogada. Robson veio de Araraquara para assumir o posto em abril de 2018.

A defesa apresentou uma manifestação junto à Corregedoria da PM em São Paulo, há cerca de trinta dias. A decisão deve correr os próximos meses.

“Deve ser pela minha cor”

Durante a entrevista, Anderson menciona muitas vezes a dificuldade de dar continuidade à sua aposentadoria e tratamento, e relata situações semelhantes que se desenrolaram de outra forma na Polícia Militar de Bauru.

“Tem um Tenente aqui, excelente pessoa, teve uma lesão praticamente igual a minha, mas foi um joelho só. Não passou pela seguradora, não passou pelo mesmo procedimento que eu, e hoje está reformado. E ele é branco. Perguntei para um médico da PM sobre essa diferença, e ele disse ‘acontece, né’”, conta.

Na mochila, estão todos os documentos que Anderson apresentou pessoalmente e depois encaminhou para serem citados nesta reportagem (Foto: Bibiana Garrido/JORNAL DOIS)

O racismo dentro das instituições seria, então, um reflexo da forma como se manifesta na sociedade brasileira. “Existe uma política de segurança pública que também esbarra de forma violenta na própria vida dos policiais que estão na ponta desse sistema, na sua maioria negros e pobres das periferias”. É como Dina Alves, coordenadora-chefe do Departamento de Segurança Pública do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM), avalia a situação.

“A gente escuta tanto os outros falar ‘pô, é mimimi’, quando uma mulher reclama, um negro reclama, um pessoa com deficiência reclama. Mas não é. Isso acontece. Quando você reclama e expande a sua reclamação, é porque você já cansou de falar e ninguém te escutou” desabafa Anderson. “Eu já pensei em várias situações, será que eu não expliquei direito? Será que precisa de outro laudo? Será que não estão entendendo? Mas eu tô com vários laudos diferentes e gastando todo o meu dinheiro nisso. Na hora que esgotei esses meios, não tem outro caminho sem ser o preconceito institucional. Deve ser pela minha cor”.

Segundo relatório de 2018 do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, um policial civil ou militar morreu por dia, em serviço, no ano passado. Do outro lado, 14 pessoas foram mortas, por dia, em intervenções policiais.

A coordenadora do IBCCRIM argumenta que o Brasil é campeão em violação de direitos da classe trabalhadora. “E os policiais não estão fora dessa categoria. É importante pensar na desmilitarização e em outros modelos de segurança pública, nos quais os próprios policiais que são prejudicados hoje, tenham seus direitos e deveres respeitados. Os soldados negros são os mais vulneráveis às mortes e doenças psicológicas”, completa.

O sonho depois da realidade

“Que tipo de assistência, então, você teve da PM?”, pergunto a Anderson, depois de quase três horas de conversa.

“Que tipo de assistência?”, questiona ele, de volta. “Muito pelo contrário, não tive assistência não. Eu fui surpreendido por um demissionário alegando que eu não tinha nada. Nunca me chamaram para conversar, nunca perguntaram se eu tinha passado na seguradora da polícia”.

Mais que a aposentadoria, o que Anderson deseja é um tratamento para aliviar a degeneração dos joelhos. Decidiu tornar seu caso público na esperança de encerrar o que teve início em 2010. “Eu queria um tratamento para solucionar meu problema, pra acabar com a minha dor. Eu já lutei tanto pra resolver isso e, se fosse ver a lógica, era pra eu estar aposentado”, diz ele.

Ao final, quis saber se o sonho que ele tinha de estar na polícia mudou depois do que aconteceu. Sem titubear, Anderson responde: “Meu problema não é com a PM, é com as pessoas que estão gestando e dando pareceres. Quando você se curva a uma situação que está errada, você não merece estar lá. Eu tenho todo o respeito pela instituição, mas se eu me curvar, isso pode acontecer com outras pessoas”.

Na carteira de ônibus circular, Anderson é deficiente (Foto: Arquivo Pessoal)