Especulação Sem Limites: um retrato do mercado imobiliário em Bauru

Qual é a relação entre especulação imobiliária, ocupação urbana e habitação; e como o Poder Público tem lidado com isso

Publicado em 13 de setembro de 2018

Valorização (financeira) de áreas urbanas é uma das consequências do processo especulativo (Foto: Lorenzo Santiago/JORNAL DOIS)

Por Lorenzo Santiago


A cidade de Bauru tem, assim como quase todas as cidades do Brasil, problemas de habitação não resolvidos até hoje. A dinâmica entre o poder público e o mercado imobiliário é uma dos principais responsáveis pelo desinteresse na resolução dos desafios. Mas, para entender como essa relação se dá, é preciso resgatar o histórico de como a cidade foi pensada ao longo dos últimos anos e estruturada pelas gestões municipais.

Com o que dá pra fazer

O principal instrumento que os municípios têm hoje para regulamentar o espaço urbano é o Plano Diretor. O documento é responsável por pensar todas as diretrizes de desenvolvimento municipal no âmbito da infraestrutura. Ele aponta as principais necessidades do município, quais são as regiões que requerem mais investimentos e quais são aqueles espaços que necessitam uso de dispositivos legais para se desenvolver.

Dentro deste diagnóstico feito sobre a cidade de Bauru, há uma série de normas que possibilitam as mudanças no espaço urbano do município e a captação de recursos para a aplicação em setores carentes de infraestrutura.

O Plano Diretor existe desde 1996 em Bauru com o intuito de fomentar o debate sobre o uso do espaço urbano e, dessa forma, promover políticas públicas na área. Em 2008, foi aprovada instituição do Plano Diretor Participativo. Apesar da iniciativa, vale mencionar que nem sempre foi assim.

Histórico de formação da cidade

O debate sobre o uso de terras em Bauru começou a ser promovido pela administração municipal, com criação do Plano Diretor de 1996. Neste processo não houve audiência pública e consulta popular (da forma que é determinada pelo Estatuto da Cidade), o que restringiu a discussão apenas à gestão pública. Um dos responsáveis pela elaboração do primeiro Plano foi José Xaides, professor de Arquitetura e Urbanismo da Unesp Bauru. Segundo ele, “o prefeito da época [Antônio Tidei de Lima] não tinha interesse que houvesse um amplo debate com a cidade. Mas houveram alguns avanços em relação a forma de se compreender o território”.

Esses avanços, interpretados pelo professor, dizem respeito a dois eixos principais. O primeiro apontava para a necessidade de criação das APAs (Áreas de Proteção Ambiental) para evitar a ocupação nas áreas de Mata Atlântica e Cerrado. O segundo, trata do desenvolvimento para a Zona Norte, a partir de doações de terras para a construção de parques e avenidas.

O projeto ainda destacava a ampliação do Distrito Industrial 2 e a criação do Distrito Industrial 3 e envolvia um plano de desfavelização integrando o Plano de Moradias e Áreas de geração de emprego e renda. O tratamento de esgoto e do lixo produzido também era apontado pelo Plano de 1996.

Um aspecto discutido à época, e que acabou sendo deixado de lado, foi o que hoje é chamado de outorga onerosa. Isso impõe limites à construção vertical de prédios e prevê a cobrança de taxas a partir de determinada altura, instrumento que regula principalmente a especulação imobiliária na cidade.

Xaides aponta que “o grande problema deste plano foi a resistência à participação popular por quem coordenou, o que limita o debate amplo e a compreensão das reais demandas da cidade como um todo”.

Dispositivo que poderia regular a especulação imobiliária não foi discutido no Plano Diretor de 1996 (Foto: Lorenzo Santiago/JORNAL DOIS)

Em 2001, surgiu outra ferramenta importante para nortear as edições seguintes do Plano Diretor: o Estatuto da Cidade, que tem como princípio fundamental “garantir a função social da terra urbana, separando o direito da propriedade do direito de uso da mesma”. Na teoria, essa lei possibilita que o espaço urbano seja pensado para atender os interesses da coletividade, e não de setores sociais a partir de Instrumentos de Indução do Desenvolvimento Urbano. Esses artifícios não estão regulamentados até hoje e por isso não são aplicados.

10 anos depois da implementação, o Plano Diretor começou a ser rediscutido para ser atualizado. A forma pela que o debate foi conduzido em 2006 se mostrou diferente em relação à discussão da década anterior, a começar pelo fato de que foi puxada pelo Poder Executivo para depois chegar à Câmara Municipal. O segundo ponto de mudança na construção do Plano foi a ampla participação popular, que começou com chamamentos públicos e teve mais de 50 reuniões em bairros urbanos e rurais, de acordo com o professor Xaides. Dessa forma, foi possível consultar a população e perceber quais regiões que mais careciam de desenvolvimento em detrimento das regiões mais desenvolvidas.

“Toda a participação da população na época possibilitou uma clara percepção de qual o papel do poder público para desenvolver a cidade de forma equilibrada. Com uma orientação clara de que a cidade deveria se desenvolver para região norte, o Plano Diretor desta época tem indicação de operações urbanas na Avenida Nações Unidas Norte que até hoje não foram executadas” afirma o professor.

Dessa forma, o Plano conseguiu estabelecer uma leitura da realidade da relação entre a população bauruense e o espaço urbano.

“De fato, Bauru reproduz a profunda desigualdade de distribuição de renda da sociedade brasileira: 1/5 da população mais pobre detém 9% da renda, enquanto o 1/5 mais rico se apropria de 42%. No entanto, a desigualdade não se reflete apenas na distribuição de renda, mas no acesso à riqueza e bens que a sociedade produz. Tanto é verdade, que a população com menor renda, vive nas regiões periféricas da cidade, particularmente nas favelas, cujo rendimento médio é inferior a dois salários mínimos, carentes de serviços de infra-estrutura urbana, de transporte, de escolas e serviços de saúde. Ao contrário, a zona centro-sul da cidade, provida de infra-estrutura e demais serviços, assegura melhor qualidade de vida, onde concentram-se os domicílios com renda maior que 15 salários mínimos. Tem-se assim um bolsão de riqueza cercado de ampla extensão de exclusão. Deve-se ressaltar, ainda, que a desigualdade na distribuição de renda é diretamente proporcional à desigualdade na escolaridade da população. Na região centro-sul, a mais rica da cidade, concentra-se a maior incidência de população com maior escolaridade. Ao contrário, nas regiões periféricas, reside a maior incidência da população analfabeta, especialmente nas favelas”.

Os dados do Plano Diretor Participativo de 2008 são interpretados por Letícia Kirchner, secretária da Seplan — Secretaria Municipal de Planejamento, que aponta para uma carência na oferta de terras. “Se tem uma demanda muito grande por habitação e você não tem uma disponibilidade de terras, quem tem terra vende por valores exorbitantes”, analisa ela.

A regulamentação da outorga onerosa era encarada como uma necessidade para controlar a especulação imobiliária, e o coeficiente de aproveitamento é o principal aspecto para moderar o crescimento vertical. Ele determina a altura máxima que um prédio pode subir, com base na área do terreno. Se o coeficiente de aproveitamento é 1, só é permitido construir uma vez a área do terreno em elevação. A partir disso, é cobrada uma taxa para cada elevação feita a mais.

O empecilho do Plano aconteceu na Câmara Municipal: quando o projeto chegou no Legislativo, foi reformulado. “Houve um lobby do mercado imobiliário junto aos vereadores, e a Câmara acabou por alterar de uma maneira drástica o Plano de 2006, e ao invés do coeficiente 1, a partir do qual elevação de 2, 3, 4, 5 deveria se pagar outorga onerosa, os vereadores eliminaram isso, e passou a cobrar somente acima do que o mercado já exercia”, relata Xaides. “O que gerou uma perda enorme na prefeitura em relação aos recursos que seriam conseguidos para poder resolver outros problemas da cidade”.

Outro aspecto visto como necessário pelo Executivo era a ocupação dos vazios urbanos. Cerca de ⅓ de toda a cidade não é ocupada, composta por terrenos baldios, arredores das ferrovias e edificações abandonadas. Segundo o Plano Diretor de 1996, 10% das construções de Bauru estão vazias ou sem uso. O preenchimento destes espaços por moradias era uma diretriz do Plano de 2006, para que depois fosse elaborada uma expansão urbana.

Cerca de 30% do território bauruense são áreas vazias (Foto: Ana Carolina Moraes/JORNAL DOIS)

O Plano Diretor de 2006 também colocava como um eixo de mudança as Zonas Especiais de Interesse Social, ZEIS. A partir desse instrumento seria possível delimitar as regiões que fomentariam as moradias populares, conjuntos habitacionais e concessões especiais com fins para moradia. Mas, desde a implementação, as ZEIS foram utilizadas exclusivamente para o programa de habitação do Governo Federal Minha Casa Minha Vida.

Letícia Kirchner, da Seplan, afirma que apesar da criação das leis e regulamentações, houve falhas na implementação: “O Plano Diretor foi muito bem feito, teve extrema participação popular, previu os instrumentos. O problema é que tudo que está escrito ali não foi transformado em realidade, com exceção das ZEIS. A maior dificuldade é sair do campo das ideias”.

A reestruturação do Plano Diretor está acontecendo em 2018 e ainda precisa de uma série de ajustes para ser encaminhado e aprovado. “Estamos fazendo a revisão da lei de parcelamento do solo, onde o objetivo é criar as condições para os vazios. Tem a questão do parcelamento, da edificação e uso compulsório que foi criado em 2008 e não foi implementado até hoje. Então nós começamos a fazer a implementação, e que tem que ser criado no Plano Diretor. Mas isso tem que ser feito de acordo com o Estatuto das Cidade” destaca Letícia.

Cresceu pra onde?

A cidade de Bauru cresceu para todos os lados de forma homogênea. Pelo menos no que diz respeito à ocupação do espaço. Em termos populacionais a expansão ocorreu em torno do centro e da ferrovia no sentido da Vila Falcão, Bela Vista, Vista Alegre e Zona Sul. A diferença ocorreu em termos de investimentos. José Xaides, professor de Arquitetura e Urbanismo, explica que “Os maiores recursos foram destinados para as construções de Praças e Avenidas na Zona Sul. A Praça das Cerejeiras, Praça Portugal, Praça da Paz, Vitória Régia dentre outros, receberam investimentos públicos e privados e acabaram se tornando os espaços de convivência social com a melhor infraestrutura da cidade. As Avenidas Nações Unidas e Getúlio Vargas também se tornaram as vias com melhor asfalto. Isso tudo faz com que essas regiões valorizem”.

As obras de duplicação na Avenida Getúlio Vargas, na gestão do prefeito Nilson Costa no começo dos anos 2000, valorizou os imóveis da região em até 3 vezes nos primeiros anos. O professor contesta que “não houve nenhuma contrapartida de quem teve seus lotes valorizados, com instrumentos que já existiam como a Contribuição por Melhorias. Eles têm o direito de ter o valor do imóvel elevado, mas o poder público também tem o direito de cobrar contrapartida do que foi investido”.

“Ao invés de o poder público garantir o desenvolvimento da Zona Norte em torno da Nações Norte, os investimentos voltam para o Sul”

A secretária do Planejamento confirma essa situação: “Muitos bairros da Zona Sul são recentes, já vem com a infraestrutura, e teve realmente muito mais investimentos nessas regiões, Zona Sul e Altos da Cidade, que teve a infraestrutura ao longo do tempo então acabou se tornando o segundo centro”.

A ocupação de regiões fora do centro se deu de forma mais desenfreada. Na década de 1970, muitos loteadores ocupavam bairros distantes da área central e não tinham compromisso em se fazer a infraestrutura necessária nestes locais. Não havia, na época, uma regulamentação municipal, estadual ou federal para que a construção de novos empreendimentos oferecessem contrapartida ao poder público. Dessa forma, diversos bairros de Bauru não tiveram investimentos necessários na época de estruturação, e que receberam algum tipo de infra estrutura só no começo do século XXI.

A 5 km distante do centro da cidade, o Jardim Marambá é um bairro que surgiu nessas condições (Foto: Lorenzo Santiago/JORNAL DOIS)

De acordo com Kirchner isso mudou, e agora para a construção de novos empreendimentos há uma série de exigências que tem de ser cumpridas: “O empreendedor tem que viabilizar o empreendimento, se não isso se torna insustentável pro poder público. Ele tem que pagar por todas as obras e apropriações necessárias. Só se dá a autorização para ele ocupar o empreendimento se ele fizer tudo isso antes, todas as obras de infraestrutura, como água, esgoto, vias de acesso”.

Desorganizado?

O chamado processo especulativo é que rege o mercado imobiliário. Segundo Xaides, “ele [processo especulativo] não acontece de forma aparentemente organizada, pelo contrário, ele precisa acontecer de uma forma aparentemente desorganizada. São construídos condomínios espalhados, não um ao lado do outro. O professor avalia que “quando se faz um condomínio longe da cidade, se cria um espaço entre a cidade e o condomínio, e neste vazio as terras passam a ser mais valorizadas do que eram antes, porque vai haver um início de investimentos mínimos de infraestrutura neste caminho”.

Letícia Kirchner explica que o poder público é o responsável por mediar essa relação:

“O mercado imobiliário sempre foi muito atuante. O poder público tem o papel de regular a ocupação urbana. Naturalmente tenta fazer isso dentro do movimento natural do mercado imobiliário que sempre vai existir, mas criando condições para tentar absorver impactos negativos e propiciar ocupações que sejam bem vindas pra cidade”.

A questão do zoneamento urbano não está restrita a relação entre poder público e construtoras. As empresas de transporte coletivo também têm interesse no crescimento esparso de Bauru. “Na hora de fazer uma linha de ônibus que tiver que passar pelo centro e depois nos vazios e depois chegar em um condomínio afastado, ela tem garantido na lei de concessão que se não tiver número suficiente de passageiros por mês nessa linha o poder público tem que pagar a taxa de ocupação dos ônibus. A manutenção das vias os impostos pagam, o preço da passagem aumenta, ou seja fica mais caro pra todo mundo, menos pra quem construiu essas áreas lá”, explica Xaides.

Renovação

Para a próxima edição do Plano Diretor, o objetivo é implementar todos os artigos que já estavam previstos, mas que não foram cumpridos.

“Saber que esses instrumentos existem, a gente sabe, mas como viabilizar o uso é o que a gente está vendo. Tem todo um rigor no processo: fazer o levantamento fundiário, de cartório, identificação do imóvel. Precisamos criar leis que criem os procedimentos para realmente colocar em prática os artigos que o Estatuto das Cidades e os outros Planos Diretores já traziam” explica a secretária do Planejamento .

Diversos aspectos ainda são importantes de serem analisados: o recolhimento de tributos de acordo com a elevação de terrenos é algo que até hoje não está definido. “Tem muita coisa pra rever”, destaca a Kirchner. “Uma delas é a lei da contrapartida dos empreendimentos, de modo que a gente traga valores maiores em relação ao valor do empreendimento. Uma parte desse valor vai ser usado para a mitigação e a outra pra melhorias na região em que o empreendimento vai ser lançado”.

Viaduto da Rua Treze de Maio, com vista para o centro (Foto: Ana Carolina Moraes/JORNAL DOIS)

Para frear o crescimento indiscriminado da cidade, a secretária de Planejamento vê como importante uma legislação que pense a cidade de forma global. Kirchner diz que é preciso pensar na ampliação do perímetro urbano com uma visão macro. Desta forma, os custos para viabilizar os novos empreendimentos teriam que englobar a infraestrutura que o local vai demandar.

O aspecto principal, para a secretária, é “criar um instituto de planejamento, uma equipe dedicada ao planejamento da cidade e fazer a revisão de algumas legislações que vão andar ao lado do plano, como lei de ocupação e parcelamento do solo”.

Desde que o prefeito Clodoaldo Gazzeta assumiu, já ocorreram mudanças significativas no Plano Diretor de 2008. Somente nos últimos dois meses, foram aprovados 6 projetos de expansão do perímetro urbano fora de Áreas de Proteção Ambiental (APAs). Ainda há o processo de revisão dessas áreas.

Na APA do Água Parada, a revisão já está concluída e está indicada a possibilidade de expansão urbana. Nas APAs do Rio Batalha e do Vargem Limpa Campo Novo ainda está sendo feito um estudo. Todas essas medidas fazem parte do pacote prometido pelo prefeito na sua campanha, chamado de “destravamento da cidade”.