Comunidade que Sustenta a Agricultura promove parceria com assentadas em Bauru 

Livre de venenos e com vínculo entre quem produz e quem apoia, entidade que atua desde 2018 em Bauru é alternativa para agricultoras do assentamento Laudenor de Souza

Publicado em 7 de dezembro de 2021

Por Camila Araujo

Comunidade que Sustenta a Agricultura (CSA) é uma entidade que surgiu no Brasil em 2013, depois de uma experiência piloto na cidade de Botucatu em 2011. Em Bauru, a iniciativa se formou anos mais tarde, em 2018, e, com o crescimento da adesão à ideia, se expandiu com a construção da Flor de Mulherando, terceira CSA da cidade, neste ano.

O objetivo de uma CSA é criar pontes entre agricultores e agricultoras do campo a um grupo de pessoas, geralmente vivendo em contexto urbano, que desejam apoiar a existência de uma agricultura orgânica, sem uso de agrotóxicos, que “preze pelo bem-estar” da flora, da fauna, e de todo o organismo agrícola, como explica Daniel Pestana, membro da diretoria da entidade a nível nacional.

Segundo ele, a iniciativa “dá suporte, sustenta a agricultura, e permite que se construa uma relação de fraternidade entre quem pratica e quem precisa se alimentar daquilo que é cultivado pela agricultura”. 

As CSAs são frutos da economia solidária, originada no movimento do cooperativismo popular, proposto no início do século XIX, como indica o trabalho “Comunidade Que Sustenta a Agricultura: Entendendo as CSAs De Belo Horizonte a Analisando Suas Possibilidades e Desafios”, de Fernanda Antunes de Oliveira, mestre em Administração.  

“Este movimento veio como resposta às consequências, como o empobrecimento dos artesãos e as condições precárias de trabalho, trazidas pelo processo de produção industrial que permitiu a rápida expansão do capitalismo”, aponta Fernanda.   

A proposta do cooperativismo era criar modelo alternativo de produção da sociedade capitalista, para garantir que as e os trabalhadores pudessem se tornar autônomos. A proposta da economia solidária, por sua vez, é focar nas necessidades das pessoas. “Se estrutura a partir de fatores humanos, de forma a estimular a propriedade coletiva, a democracia e as relações sociais”, indica a pesquisadora. Ela explica ainda que esse movimento, ou alternativa, acontece de forma a reformar o sistema em que está inserido, sem necessariamente propor uma ruptura. 

Na prática todo coagricultor ou coagricultora, ou seja, quem apoia financeiramente a produção de alimentos de uma determinada CSA, pode receber o alimento produzido pela comunidade. Mas a proposta da entidade é que essa troca não seja meramente mercantil, como explica Daniel: “Não é pagar para receber o alimento, e sim se comprometer em sustentar a agricultura, conhecer e se interessar pela vida de quem cultiva”. 

Na teoria da economia solidária, “todos os integrantes devem ter direito à mesma parcela do capital e também o mesmo direito de manifestação diante das decisões através do voto”, para que a comunidade se estruture “democraticamente através da autogestão”, que é diferente da administração estabelecida em empresas, em que um patrão, gerente, ou diretor dirige de forma hierárquica o espaço.

Por isso, na CSA, o envolvimento entre as partes é importante para criar uma relação comunitária, diz Daniel. Existem dias de ir a campo, quando as e os coagricultores passam a conhecer o local em que o alimento é cultivado e, até mesmo, “colocar a mão na massa”. Ou na terra. Durante a pandemia essas atividades foram temporariamente interrompidas.

Nesta forma de organização, é necessário que as pessoas envolvidas tenham “maior consciência sobre os direitos e deveres de cada um”, indica a pesquisadora Fernanda Antunes, “assim como os limites de seus poderes sobre as tomadas de decisões”. Quem faz parte de uma CSA é instigado a ter mais consciência de seu trabalho e da importância de seu papel para o coletivo.

Quando acontece uma geada, ou alguma situação que impacte o cultivo de alimentos, ou diminua a quantidade de comida que chega à mesa dos coagricultores, por exemplo, a ideia é que a comunidade continue sendo apoiada e sustentada. 

“Propor um ambiente de proximidade e, mais que isso, de laços afetivos entre agricultores e consumidores no lugar de uma relação de consumo puramente econômica parece ser oportuno para o compartilhamento de novos signos e significados que se distanciam de valores dominantes da atual forma de consumo, como da impessoalidade, do individualismo, do anonimato e da sobreposição do econômico sobre questões sociais e ambientais”. Fernanda Antunes de Oliveira

Flor de Mulherando 

Sem estufa ou irrigação no assentamento Laudenor de Souza, do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) localizado em Brasília Paulista, a 35 km de Bauru, Eliete Santos, uma das agricultoras da Flor de Mulherando, afirma que ficou com receio na inauguração desta parceria, no início de setembro, devido à geada que aconteceu na cidade no mês anterior.

Dessa forma seriam poucos os alimentos fornecidos no primeiro encontro entre as agricultoras e os coagricultores na escola Flor de Lótus em Bauru. “Será que o pessoal vai comprender?”, pensou na ocasião. 

A resposta dos organizadores do encontro, membros da CSA, foi afirmativa: “sim, porque o agricultor tem essas dificuldades.” 

“A filosofia [da CSA] é muito mais interessante do que a compra e venda de mercadoria”, avalia Eliete, com um sentido de trabalho “humano”, “companheiro” e de “solidariedade”. “Estamos apaixonadas”, declarou. 

Para ela, trata-se de “dar as mãos, e saber que tem o povo que mora na cidade, trabalha e não tem tempo de produzir”. Por outro lado, os agricultores “trabalham com a terra e dedicam sua vida a isso”, diz a assentada. 

Eliete explica que apenas mulheres estão à frente da produção da Flor de Mulherando, organizando os pedidos, administrando a contabilidade e produzindo os alimentos. Essa última etapa é a única que conta com a ajuda de outros membros das seis famílias que integram esse trabalho.

O assentamento Laudenor de Souza já vendia cestas de alimentos orgânicos agroecológicos no Instituto Acesso Popular, que cedeu o espaço para a distribuição dos alimentos. As vendas, explica Eliete, não eram suficientes para fechar as contas da produção, fato que se inverteu com a parceria: “o retorno era muito incerto, a gente não tinha certeza se uma entrega iria pagar as despesas da viagem de Brasília Paulista até Bauru”.

Ainda antes disso, trabalhar com a agricultura já não era novidade para as assentadas do Laudenor de Souza. Tendo surgido enquanto acampamento em 1997, as famílias foram assentadas quatro anos mais tarde, em 2001, e desde então elas começaram a produzir alimentos na terra.

“Desde sempre produzimos, mas sofremos com a falta de infraestrutura, políticas públicas e investimento”, explicou Eliete. A agricultora conta que durante a administração petista “o governo comprava nossa produção e nós doávamos para projetos sociais”. O rendimento, segundo ela, era de mais de 5 toneladas de alimentos por semana. 

A assentada conta também que o assentamento do MST em Brasília Paulista tinha uma associação, mas que não pôde ser mantida por falta de dinheiro para pagar despesas, o que segundo ela também dificultou o acesso a políticas públicas. 

Programa de Aquisição de Alimentos 

Uma campanha da década de 1990 chamada de “Ação da cidadania contra a fome e a miséria e pela vida”, encabeçada por Herbert de Souza, sociólogo, precedeu a iniciativa federal do Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), cujo objetivo é apoiar e incentivar a agricultura familiar no Brasil. Nesta proposta, a “compra com doação simultânea” a qual Eliete se refere, é uma modalidade do PAA. 

O programa foi instituído em 2003, no contexto da agenda política pelo combate à fome, se desdobrando no Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Sisan), em 2006, e na Política Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (PNSAN), em 2010. 

A fome, nesse contexto, atingia 14,8% da população, segundo dados da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO). Em 2014, graças a uma agenda de combate ao problema, o país saiu do Mapa da Fome da ONU, quando 1,7% da população passava fome, equivalente a 3,4 milhões. 

Ao longo dos últimos anos a situação se inverteu e houve um incremento no contingente de famintos: em 2018, 10,3 milhões de pessoas estavam em situação de insegurança alimentar grave, e em 2020, esse número subiu para 19,1 milhões.  

A compra com doação simultânea corresponde a 72,3% dos recursos investidos pelo governo entre os anos de 2011 a 2018. Outras modalidades são o PAA-Leite, que significa a compra de leite de produtos para doação a famílias em situação de vulnerabilidade em regiões semiáridas, PP-Semente, que é a aquisição de sementes destinadas a doação para agricultores familiares em vulnerabilidade, compra institucional, para abastecimento de locais da administração pública, e formação de estoque, um crédito concedido a produtores. 

Em quase 20 anos de implementação, o programa recebeu cerca de R$12 bilhões em recursos, sendo que nos últimos anos houve uma diminuição de verbas. Uma pesquisa do Instituto de Pesquisa de Economia Aplicada (IPEA) mostrou que houve forte tendência de crescimento dos recursos aplicados no programa até 2006, seguido por um crescimento mais lento nos anos seguintes, até 2012, quando chegou a um investimento de R$1,2 bi neste ano. 

Em 2013, houve queda na aplicação de recursos, com “leve recuperação em 2014”, aponta estudo, informando que voltou a decrescer a partir de 2015. “O menor valor do período foi observado em 2018, quando foram aplicados apenas R$ 253 milhões”, diz o IPEA. 

A pesquisa foi publicada em 2019, ano em que o valor executado pelo PAA foi de R$ 188 milhões, um sexto do que teve o projeto no ápice. Nos últimos oito anos, houve uma queda de 95% de alimentos comercializados por meio do programa. Se em 2012 esse número chegava a 297 mil toneladas de alimentos, em 2019 despencou para 14 mil toneladas.

O PPA, que tem orçamento de R$500 milhões vinculado ao Ministério da Cidadania, viu R$ 240 milhões não executados no ano anterior. No dia 20 de setembro, o presidente Jair Bolsonaro vetou o Projeto de Lei 823/21, que previa ações emergenciais de amparo à agricultura familiar até 2022. 

Pela Lei da Agricultura Familiar (11.326/06), a ou o agricultor familiar é aquele que pratica atividades no meio rural, em uma área menor do que quatro módulos fiscais – essas medidas variam de acordo com a região do Brasil. É esse setor que produz alimentos no país, sendo responsável por 48% do valor de produção de café e banana. Nas culturas temporárias, é responsável por 80% do valor de produção da mandioca, 69% do abacaxi e 42% da produção do feijão.

Como formar uma CSA 

A Flor de Mulherando surge depois de dois anos de amadurecimento da CSA Raízes. “A gente percebeu que existiam pessoas com caminhos diferentes”, explica Cinthia Fernandes, bióloga que participa da construção da nova CSA e que ajudou a fundar a anterior. 

Agricultoras do Flor de Mulherando são assentadas no Laudenor de Souza, do MST (Foto: Daniel Pestana/Reprodução)

Daniel Pestana conta que a iniciativa nasce dentro de uma comunidade escolar, porque atende a vontade da escola Flor de Lótus, “que tem no seu projeto político pedagógico o objetivo de fazer construções comunitárias com as crianças”. 

“Nossa ideia é expandir e mostrar que é possível construir laços comunitários com outras demandas, plataformas, searas, por exemplo, na alimentação”, declara.

Daniel explica que o objetivo das Comunidades que Sustentam a Agricultura é manter uma “dimensão artesanal”, com produções pequenas, com vínculos fortes estabelecidos. De tal forma, para que mais pessoas façam a adesão ao movimento, é preciso que novas CSAs sejam construídas. 

“Tudo que ganha dimensão fica mais complexo, quando você cresce, você acaba entrando em ritmo de escala, sistematizando o processo e afastando o lado artesanal da produção”, explica, afirmando que “várias CSAs são melhor que uma super CSA”.

Para formar novas comunidades é preciso que haja pessoas interessadas em criar esse tipo de vínculo, e agricultores que produzem de forma artesanal e orgânica, sem agrotóxicos, que busquem o mesmo. 

No site da CSA, é possível saber mais sobre os princípios buscados pela iniciativa e também encontrar todas as comunidades existentes no Brasil, ou entrar em contato para propor novos vínculos. Em Bauru três pontos no mapa indicam a existência dessas comunidades. São elas a CSA Raízes, a Flor de Mulherando e a Demétria. 

Outras iniciativas

A CSA Demétria é pioneira nesse formato de consumo no país, cujo sítio em que os alimentos são produzidos se localiza em Botucatu e conta com mais de 300 famílias envolvidas, além de quatro cidades que recebem os produtos.

Os alimentos produzidos por assentados do MST que também abastecem Bauru são distribuídos em três locais. Na subsede da Apeoesp, o assentamento Luiz Beltrame comercializa sua produção de forma quinzenal. 

As próprias assentadas do assentamento Laudenor Souza vendem cestas de comidas agroecológicas no Instituto Acesso Popular. Uma terceira cesta do MST, cujos itens são produzidos em Guarantã, também é comercializada para funcionários do Sesc, e em breve vai abrir para toda a população. 

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