Busca por alimentos orgânicos aumenta em Bauru durante a pandemia

Agricultura familiar sustentável e movimentos sociais estão na linha de frente no fornecimento dos alimentos

Publicado em 27 de julho de 2020

Desde março houve um crescimento acentuado no número de integrantes do grupo "Cestas produtos orgânicos" no WhatsApp, canal de diálogo entre consumidores e as famílias assentadas no Luiz Beltrame (Foto: Reprodução / Diogo Mazin)
Por Camila Araujo

A procura por alimentos sem agrotóxicos cresceu durante a pandemia. É o que foi percebido pelo Assentamento Luiz Beltrame, do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) em Gália, cidade que fica a menos de 50km de Bauru, que tiveram um salto no número de pedidos desde que a quarentena começou.

De acordo com Mariane Catelli, professora e integrante do Coletivo Chão de Giz que é responsável pela divulgação e distribuição dos alimentos em Bauru, no ano passado, eram 40 pedidos em média a cada distribuição. Até o início de julho, a média dos pedidos chega a 80. “Este ano toda vez houve um ‘recorde’ de entregas”, conta Mariane. 

Outra iniciativa social que também viu crescimento durante a pandemia foi a Comunidade que Sustenta a Agricultura. Essa entidade, conhecida por seu acrônimo “CSA”, existe no país desde o ano de 2013, e passou a desenvolver atividades no município no final de 2018. 

Uma CSA é composta por um agricultor ou agricultora com habilidades no cultivo de alimentos, e um grupo de pessoas que queiram montar essa ponte do campo à cidade. Trata-se de uma agricultura orgânica, na qual os agricultores recebem seu salário, bem como todas as necessidades do organismo agrícola, desde o lençol freático, até a flora, a fauna, as sementes e os instrumentos de plantio, custeados pela comunidade que se juntou em torno daquele organismo agrícola para sustentá-lo. É o que conta Wagner Santos, diretor operacional da entidade no Brasil. Ele salienta que “é uma comunidade que sustenta a agricultura, e não apenas o agricultor”.

Cada participante da comunidade se torna um coagricultor. “Como parceiro, você possibilita que ele possa fazer o trabalho dele. Em troca, você recebe alimentos de acordo com a época do ano, de acordo com a sabedoria da terra”, pontua o diretor. 

Os alimentos semanais recebidos pelos coagricultores são chamados de “cotas” (Foto: Bianca de Carvalho/Reprodução)

Wagner Santos conta que houve um acréscimo de pelo menos 10 pessoas a mais em seu núcleo comunitário desde o mês de março, quando iniciou a pandemia. Segundo ele, esse número é pelo menos o dobro do que o esperado em meses normais.

“A procura é grande e estamos vendo a possibilidade de aumentar vagas disponíveis. Para julho, estamos abrindo mais 30 vagas. Vamos fazer uma divulgação para novas pessoas entrarem na comunidade”, revela.

Cinthia Fernandes e Bianca Carvalho são as biólogas responsáveis por organizar a CSA de Bauru, cujo nome é CSA Raizes. Elas contam que o movimento na cidade iniciou com um amigo em comum, Gustavo. Ele conhecia a Eneida, uma agricultora que atua na cidade há anos, e chamou-a para participar dessa entidade. Antes de transitar para o orgânico, Eneida era uma produtora convencional, e atualmente ela está transitando para a produção orgânica biodinâmica. 

Já no sítio dos sogros de Vanessa Rodrigues, que fica na zona rural de Paulistânia, a história é um pouco diferente: antes do isolamento social, a produção era toda voltada ao abastecimento de uma escola, que fazia encomenda anual por quilo. “No início da pandemia, a gente tava com um monte de alimentos plantados e ia perder tudo”, lembra a produtora. 

A ideia de vender à moda antiga, indo de casa em casa, foi do seu noivo, que publicou a novidade em suas redes sociais. Desde o final de março, os produtores saem do sítio com os alimentos prontos para serem entregues ao consumidor, que solicita diretamente via whatsapp. A lista de produtos é enviada sempre um dia antes das entregas com o título “Verduras Frescas Direto da Horta Sem Agrotóxicos”. 

E deu certo. “Um foi indicando para o outro, e foi aumentando muito rápido mesmo”, revela Vanessa sobre o interesse dos clientes em consumir os alimentos da família. Na primeira entrega, foram dez pessoas atendidas. Atualmente, a distribuição, que ocorre às quartas-feiras e aos sábados, gira em torno de 30 a 40 pedidos. 

Agricultura familiar

A Lei da Agricultura Familiar (11.326/06) considera agricultor familiar aquele que pratica atividades no meio rural, em uma área menor do que quatro módulos fiscais – essas medidas variam de acordo com a região do país. No sudeste, cada módulo fiscal possui de 5 a 70 hectares, que equivale de sete a 98 campos de futebol, a depender da qualidade do solo, relevo, acesso e capacidade produtiva. 

Os alimentos que chegam à nossa mesa geralmente são produzidos pela agricultura familiar. De acordo com dados do IBGE, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, nas culturas permanentes –  aquelas que tem longa duração e produzem por vários anos sem necessitar de um novo plantio – , esse segmento corresponde por 48% do valor de produção de café e banana. Nas culturas temporárias, são responsáveis por 80% do valor de produção da mandioca, 69% do abacaxi e 42% da produção do feijão. 

Apesar disso, segundo Chico Maia, ex-secretário de Agricultura e Abastecimento de Bauru, a cidade é constituída majoritariamente por pecuária leiteira e de corte. A agricultura familiar tem um peso pequeno dentro da economia do município, e em uma parte desse setor, existem produtores utilizando os mecanismos convencionais, aqueles que ainda utilizam defensivos agrícolas, conta o ex-secretário. 

Embora nem toda a produção da agricultura familiar seja orgânica, 90% da produção orgânica no país é proveniente da agricultura familiar. De acordo com o Serviço de Apoio às Micro e Pequenas Empresas, o Sebrae, são aproximadamente 17 mil propriedades certificadas como produtoras de alimentos orgânicos em todo o Brasil. 

Aumento histórico da liberação de novos agrotóxicos (Fonte: Greenpeace/Reprodução)

De acordo com uma pesquisa feita pelo Greenpeace, baseada em informações divulgadas pelo Diário Oficial da União, o Brasil passou por um aumento brusco no uso de agrotóxicos em 2017, na época do Governo Michel Temer (MDB), com a liberação de 166 novos defensivos agrícolas. Apenas 12% de toda produção agrícola no Brasil é orgânica, segundo o Censo Agropecuário de 2017. 

Certificação 

Existe um passo-a-passo para que o produtor rural receba o selo de certificação do alimento orgânico, que se inicia com a filiação no cadastro do Ministério da Agricultura, Pesca e Abastecimento (MAPA), seguido de vistorias periódicas, plano de conversão, entre outras etapas. 

A fase do plano de conversão, que é o processo de mudança do manejo convencional para o orgânico requer tempo e planejamento.   

Para adubar a terra de uma produção que não contém agrotóxicos é preciso utilizar esterco produzido por animais, sem utilização de defensivos agrícolas ou fertilizantes. Caso o animal tenha consumido grama com agrotóxicos, por exemplo, esse esterco não pode ser utilizado numa produção orgânica com certificado. 

Na opinião da produtora rural Vanessa, esse processo não compensa. “A gente nem foi atrás do selo, demora muito”, comenta. 

Comida de verdade

“Chegou um momento que eu percebi que pra eu ter um valor nutricional significante eu teria que optar por alimentos orgânicos”, conta Gabriel Cruz, desenvolvedor e estudante de computação, que começou a se alimentar de forma mais saudável durante a quarentena. Ele é uma das diversas pessoas que consomem os alimentos do assentamento Luiz Beltrame desde que a pandemia começou em março. 

A distribuição dos alimentos do Assentamento Luiz Beltrame ocorre às quartas-feiras, a cada duas semanas (Foto: Camila Araujo)

Leticia Santos, que é contadora e também consumidora dos alimentos do assentamento, elenca motivos parecidos que a levaram a consumir os produtos agroecológicos das famílias assentadas, entre os quais “consumir produtos regionais e de qualidade, reduzir o lixo, reduzir o consumo de industrializados, contribuir com pequenos produtores e causas sociais”. 

Ela diz que a melhoria na saúde de toda a família foi um ponto central para buscar produtos sem agrotóxicos. “Os venenos são os principais causadores de doenças como câncer, por exemplo”, aponta. A Organização Mundial da Saúde indica que o consumo de agrotóxicos causa 20 mil mortes por ano. Segundo o Ministério da Saúde, foram 84 mil casos de intoxicação por agrotóxicos entre 2007 e 2015. 

Motivos parecidos levaram Flávia Zumiani, servidora pública, e Felipe Natanael, garçom, a optarem pelos alimentos agroecológicos. Para Flávia, é importante incentivar os trabalhos de cooperativas que produzem alimentos orgânicos. Essa rede de incentivo permite com que os assentados melhorem sua qualidade de vida, e consequentemente, continuem atuando na recuperação de áreas ambientais degradadas através da agroecologia, pontua a servidora.

Para Felipe, apoiar os movimentos sociais é apoiar a transformação social, algo que ele acredita ser importante. 

“As pessoas estão acordando para a importância de se ter uma boa alimentação, uma alimentação viva, que traga para as pessoas condições de estarem bem nutridas”, comenta Wagner Santos, da CSA no Brasil. 

O diretor aponta as diferenças entre o alimento orgânico e convencional, e considera que o primeiro é um alimento vitorioso: “o orgânico busca formas de se defender das intempéries e das pragas. Faz de tudo para sobreviver até chegar a sua mesa”. Por outro lado, no alimento convencional, “qualquer coisa que o ataque, coloca-se veneno. Esse alimento cresce numa redoma de vidro e a planta se torna fraca”.

Chico Maia lembra que em 2017 a cidade importava seus alimentos orgânicos e conta que isso continua acontecendo, ou seja, a produção de alimentos em Bauru ainda não está voltada a esse segmento. “O processo de produção orgânica parte de uma consciência de que é necessário consumir alimentos mais saudáveis”

Coagricultoras seguem protocolos de segurança ao retirar os alimentos da CSA (Foto: Cinthia Fernandes/Reprodução)
Meio-ambiente 

Além dos prejuízos à saúde, a agricultura convencional também agride o meio-ambiente. “No longo prazo, ela desestrutura o solo. Uma camada de 1 centímetro de solo demora centenas de anos para ficar pronta. No Brasil, temos perdido camadas e camadas de solo agricultável, e para poder recuperar serão milhares de anos”, alerta Chico.

O ex-secretário de Agricultura e Abastecimento lembra também que o mau manejo do solo, causado por esse tipo de agricultura, causa o processo de desertificação, como é o caso do interior do Rio Grande do Sul e na região de Barreiras, na Bahia. Em virtude da irrigação em excesso, com muita lavagem do solo, os nutrientes acabam indo embora com a água, restando apenas sal. Com a salinização do solo, não se produz nada. 

Para Wagner Santos, no agronegócio os grandes agricultores não são agricultores e sim “negociantes que produzem em milhares de hectares”. “É basicamente monocultura. Você sai andando na região, são quilômetros e quilômetros de cana de açúcar e eucalipto”. Em sua análise, a monocultura do campo proporcionada pelo agronegócio afeta a própria sociedade, que passa a ter um “monopensamento”. 

“Apoiar o pequeno agricultor é apoiar a diversidade de plantação no campo […] a gente é aquilo que come não é apenas um jargão, e sim uma verdade”.

Auxílio para agricultores

Uma boa notícia aos pequenos agricultores é a aprovação pela Câmara dos Deputados de um projeto de lei cujo objetivo é auxiliar a agricultura familiar durante a crise da covid-19.

O PL 735/2020, de autoria dos deputados Paulo Pimenta (PT/RS) e Enio Verri (PT/PR), aprovado na segunda-feira, dia 20 de julho, prevê o pagamento de R$ 3 mil, em cinco parcelas de R$ 600, para agricultores que não tenham recebido o auxílio emergencial aprovado pelo Congresso em abril. Prevê também o pagamento de R$ 6 mil, em cinco parcelas de R$ 1,2 mil, para mulheres agricultoras chefes do núcleo familiar.

Os agricultores familiares não constam nos grupos atendidos pelo auxílio emergencial do governo Bolsonaro (sem partido). 

Vale ressaltar que a aprovação foi fruto de intensa pressão popular e dos movimentos sociais, após a votação ter sido adiada por semanas. Agora o projeto segue para análise do Senado Federal e, caso aprovado, deve passar pela sanção presidencial. 

Como apoiar a agricultura familiar

Desde março houve um crescimento acentuado no número de integrantes do grupo “Cestas produtos orgânicos” no WhatsApp. Nesse canal, as famílias assentadas no Luiz Beltrame divulgam seus produtos disponíveis quinzenalmente para retirada em Bauru. 

O grupo, que antes da pandemia contava com menos de 80 integrantes, atingiu a capacidade máxima de membros no fim de junho. Houve a necessidade de abrir mais um grupo no aplicativo para atender os novos apoiadores e consumidores, bem como de criar um site para concentrar todas as informações de pedidos de alimentos.   

“Esses movimentos estão na luta pela igualdade de condições de vida justas há um longo tempo”, avalia a contadora Letícia, consumidora dos alimentos orgânicos do MST.

“Eles buscam oferecer alimentos de qualidade e sem veneno, e principalmente sem o monopólio do capital. Eu acredito na importância do apoio a esse e tantos outros projetos sociais que visam auxiliar e oferecer melhores condições de vida às comunidades”, defende.

Para Gabriel, que também compra os alimentos, um dos principais motivos para apoiar pequenos produtores da agricultura familiar é o trabalho de agloflorestamento que promovem nos assentamentos.

A agrofloresta é um modelo de plantio que busca conservar a originalidade da floresta, mantendo as diversas espécies naturais junto com a plantação. Entre as vantagens desse modelo, estão o baixo índice de desmatamento, a conservação da água, a melhor qualidade do solo e o aumento da biodiversidade. 

Em contraste, a monocultura envolve o plantio de um único tipo de produto, cultivado em um grande espaço de terra, com a remoção da cobertura vegetal original. O alto uso de agrotóxico, a redução da fauna, o aumento de pragas e insetos, a redução da mão-de-obra, e a perda dos nutrientes do solo são características do modelo.

Contatos 

Assentamento Luiz Beltrame (Link do grupo no WhatsApp: https://chat.whatsapp.com/DzvEJb79wy6FrbfVltccla)
CSA Raízes (Cinthia Fernandes 14 99113-9050)
Vanessa Rodrigues (14 99607-8351)

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