Azul ou vermelha?

Que artistas estamos sendo? Não se trata de julgar a arte, mas de provocar uma reflexão sobre os papéis que estamos desempenhando

Publicado em 18 de outubro de 2021

Ilustração por Cátia Machado
Por Cátia Machado*, colunista do J2

“Azul ou vermelha?” pergunta Morfeus a Neo, no primeiro filme da trilogia Matrix, consagrado no imaginário da sociedade, de cinéfilos a nem tanto, e com sua marca merecida na história da 7ª Arte. Filosofia pura!

Ilusão ou realidade?

Cada obra artística cumpre um papel social, quer seja entreter, emocionar ou causar reflexão. Fazer arte é interpretar o mundo em que vivemos e devolver, através do produto final, uma leitura única do criador/artista através das diversas linguagens, que traduz uma percepção que é, ao mesmo tempo, individual e coletiva. Como já disseram, o bom poema é aquele que parece que lê a gente, e não a gente, a ele. Assim, nós, sendo seres coletivos, falando de si, falamos também do todo, trocamos e transformamos aos que tocamos. E este ato de transformadores potenciais nos leva a que lugar?

Ser artista é uma responsabilidade, como instrumento que somos de transformação da realidade, provocadores do pensamento crítico e de formação da identidade de um povo.

A arte é um espelho! O que estamos refletindo?

A tecnologia vem nos ensinando muita coisa. E “desensinando” também! Ao mesmo tempo em que temos tanta informação, como jamais houve na história da humanidade, temos pouco processado, através do pensamento crítico, e menos ainda criado. Por exemplo, o Google nos tirou das bibliotecas e, ainda assim, vemos uma arte como a Literatura sendo absolutamente elitizada e distante do povo. Sem leitores, vem minguando o imaginário humano, que se acostuma ao mundo e cenários prontos, ao figurino e aparência pronta de seus personagens favoritos, ofertados pelo cinema e, cada vez mais, pelos serviços de streaming por assinatura. Nem falarei da TV aberta, apesar de não relegar sua importância, no espaço reduzido que ainda alcança. E, obviamente, sem deixar de dar o valor devido ao cinema. Afinal, começamos esse texto com um clássico – Matrix – nos colocando a pensar sobre qual caminho estamos escolhendo seguir, neste mundo tão distópico. E se faz necessário firmar a ressalva: a tecnologia não pode e nem deve ser demonizada, ela também é instrumento que, bem utilizado, também tem capacidade de mudar o mundo. Senão, caio na armadilha do negacionismo, e não estou aqui para ser confundida com grupos a que não pertenço, mas combato e desconstruo sempre que posso.

A Arte é um espelho sim! Mas num mundo de selfies e filtros, não queremos mais olhar para nossos rostos tal qual realmente são. Assim como não queremos olhar a realidade tal qual ela é. Uma geração ou duas antes da minha, dizia-se um termo que cai como uma luva para estes tempos: “dourar a pílula”. Pintamos o remédio de dourado para melhor engolí-lo. E me vem a pergunta: “Qual remédio?”.

Que pílula estamos escolhendo? A azul ou a vermelha? Poderia fazer a analogia cromática com ideologias políticas, até, mas deixo este desenvolvimento para outro momento. Vou ficar com a simbologia das cores, me aproveitando da formação em Design que tenho, numa universidade pública e de qualidade, privilégio de branquitude, e que tanto faz falta à maioria dos brasileiros. O azul, de forma simplista, remete ao sonho (ou ilusão), enquanto o vermelho, à paixão, ao sangue, entre outros paralelos possíveis. Na encruzilhada da escolha em que se vê o personagem Neo, de Matrix, a pergunta é: escolhemos a ilusão confortável ou a verdade, pungente, rasgada e dolorosa?

Tomo a liberdade de trazer esta pergunta para o meu mundo, o artístico. Quais artistas estamos sendo? Não se trata de julgar a arte de um artista ou outro, mas de provocar, em todos nós, uma reflexão sobre os papéis que estamos desempenhando, quais mudanças (ou não) estamos proporcionando e, mais importante que tudo, a quem servimos? Porque, se há uma arte que é capaz de inflamar corações e mover um povo, também há aquela que é a nossa “cachaça”, como bem disse Chico Buarque. Sem a cachaça, ninguém segura este rojão, certo? Mas só com a cachaça, quem muda o mundo?

Não é à toa que governos de extrema direita, assim que assumem o poder, tratam de destruir e deslegitimar, não apenas a Arte e a Cultura, mas a todos os artistas e trabalhadores do setor. Simplesmente porque eles sabem do potencial deste grupo de se contrapor às políticas de desigualdade que proporcionam. O artista tem o poder de tocar o coração humano. Esse mesmo artista que carrega a pecha de “vagabundo”, nos sistemas ditatoriais e extremistas. Os artistas e os professores são sempre os maiores inimigos do poder opressor, e pelo mesmo motivo. Portanto, se há ainda alguém aqui, lendo este texto, que acredita na máxima que o artista é vagabundo, que a cigarra (da fábula das formigas) é preguiçosa e que o professor é um doutrinador comunista, reflita sobre a origem destes preconceitos e qual realidade estas afirmações perpetuam.

Artistas, uni-vos! Que nossas artes sejam mais do que ego meritocratas, mas que tragam a mensagem que resgata, no lugar mais íntimo do ser humano, a nossa conexão com o outro, com o povo, com o coletivo. Somos transformadores do mundo, sim, mas, antes disso, somos parte deste mundo. Estamos aqui para vivermos em paz, não para criar guerras. Só que a fome causa guerra. A exploração de quem trabalha oito horas por dia, ou mais, sem poder ter uma casa para chamar de sua, ou sem condições mínimas de sobrevivência com dignidade, não pode ser naturalizada. Sobretudo, que a nossa arte não seja um produto confortável para o sistema. Não sejamos o elemento que anestesia os oprimidos e explorados, colocando-os em condição de resignados, porque “as coisas são assim mesmo” e “você que não lutou o suficiente por seu lugar ao sol”.

Roma já praticava isso há milênios atrás, com a política do pão e circo. Hoje, já falta pão, e o circo vem, não dos artistas, mas da capital do país, com as aberrações proferidas por seu líder máximo. Por fim, recorrendo à Arte que provoca a reflexão, fico com a pílula vermelha e os trechos da música Comida, de Arnaldo Antunes, Marcelo Fromer e Sérgio Britto, meu mantra existencial e artístico, nestes tempos:

“A gente não quer só comida, a gente quer comida, diversão e Arte,

A gente não quer só comida, a gente quer saída para qualquer parte!”

“A gente não quer só dinheiro, a gente quer dinheiro e felicidade

A gente não quer só dinheiro, a gente quer inteiro e não pela metade!”

“Bebida é água!

Comida é pasto!

Você tem sede de quê?

Você tem fome de quê?”

*Cátia Machado é cantora e membro do Conselho Municipal de Cultura

As colunas são um espaço de opinião. Posições e argumentos expressos neste espaço não necessariamente refletem o ponto de vista do Jornal Dois.
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