Agridoce novembro

Eventos culturais retornam em meio à período de incertezas e renovação 

Publicado em 2 de dezembro de 2021

Penúltimo mês do ano na cidade é marcado por movimentação cultural, meses depois das restrições da pandemia (Colagem: Cátia Machado)
Por Cátia Machado, colunista do J2

Temos uma necessidade intrínseca de fazer parte de um todo, de um grupo, de um tempo e lugar, de uma cultura. Somos seres gregários – nome dado a espécies que vivem, convivem e sobrevivem como coletivo. Motivos não faltam para que nós tenhamos socializado e evoluído desta forma, mas podemos destacar alguns, como os nossos cinco sentidos sem grande destaque na natureza: paladar, olfato, audição, tato e visão. Também não somos fortes, nem rápidos, nem grandes, nem temos garras pontiagudas ou dentes bons para destruir predadores ou prover alimento. Mas apesar disso, somos cosmopolitas! Inteligentes, criamos a linguagem escrita. Temos, ainda, polegar opositor, atribuímos significados para as coisas, além de suas aparências. Criamos os signos, símbolos, leis e costumes, tecnologia, ciências e deuses. Inventamos o amor romântico. Fazemos arte.

 

Desta forma, para nos identificarmos, usamos o mesmo uniforme, vocabulário e valores, por exemplo. Ao contrário, para nos individualizarmos, questionamos e nos afastamos, duvidamos e descredibilizamos, nos separamos do todo, do nosso grupo humano. Convivendo com adolescentes, vemos nitidamente esta tendência. É um sentido de grupo que perdemos conforme nos tornamos adultos.

 

Dentro do universo artístico, temos ainda mais nítido este aspecto. Aliás, quanto mais impregnados o ego e as vaidades, mais nos separamos, comparamos e criamos uma ideia ilusória de sermos melhores que o outro.

 

Panorama geral descrito, não podemos deixar de enfatizar as iniciativas que, apesar de tudo, correm no caminho contrário a este. Que a gente tenha como exemplo a crença de que caminhar junto dá certo!

Retomada cultural

Estamos encerrando novembro com o início da reabertura dos espaços que abrigavam e empregavam nossos artistas e trabalhadores da arte. O público, ainda de forma lenta, começa a querer voltar a socializar. Na África, novas variantes surgiram e o mundo teve que digerir sua negligência com relação aos pretos e pobres. Por aqui, há números de casos e mortes no sentido inverso, no “delay” já conhecido da doença, que avança no sentido leste-oeste. E os pretos e pobres, artistas, jovens, cocriadores da esperança, das relações sociais, da economia e da arte tupiniquim ainda precisando respirar. Mês da Consciência Negra sem muito o que celebrar, perto do que ainda se precisa discutir e construir, mas, principalmente, desconstruir.

Agora sim, chegamos ao que interessa. Tudo indicava que seria difícil, que seria inédito, que seria importante, que poderia entrar para a história cultural da cidade. Poderia não dar certo, mas também poderia dar muito certo. O Espaço Gentileza abrigou, no último dia 14, o Festival de Música Pra Pular Brasileira, numa parceria entre três importantes nomes da cultura atual na cidade: Renato Magu, do Acesso Popular; DJ Rato, da produtora Ratoeira Tip, e Nél Marques, do Espaço Gentileza. Juntos, inauguraram o Circuito Bauruense de Arte e Cultura.
Festival "Música Pra Pular Brasileira" reuniu mais de 15 atrações artísticas (Foto: Espaço Gentileza/Divulgação)

Dentre as atrações teve o próprio DJ Rato, com muita brasilidade nos sons, Jô Moura, com um samba de desenferrujar a quarentena, e Tupy Sound Sistem, com a alegria dançante que contagiou a todos. Muita gente envolvida na produção de um evento realizado sem qualquer verba pública. Ali, foi possível ver que as flores da arte brotam do asfalto, contrariando as circunstâncias adversas. 

 

Além disso, também foi possível ver a economia girando! Expositores e feirantes vendendo produtos artesanais, gastronomia, belos drinks, decoração, técnicos de som, seguranças, porteiros e caixas. Todos trabalhando e fazendo jus ao dinheiro que tanto tem faltado ao brasileiro. Acreditem: muito expositor vendeu TUDO. E saiu pra curtir a festa, junto ao público de mais de 500 pessoas. Todo mundo vivo! Todo mundo bem! Bom reforçar, antes que os críticos de plantão venham apontar os dedos.

 

Frase mais ouvida? Quase com certeza, foi esta: “A gente precisava disso!”. Ouvi, também, que parecia um “mini Águas Claras”, da boca de uma cara que esteve no Festival de Águas Claras (para entender: assistam “O Barato de Iacanga”, na Netflix). Um espaço aberto, bem roots, bem cultural, bem resistência, com muito “fora Bols0n4ro”, pra dar a força pra geral.

Fumacê realizou a primeira edição da "Festa Preta", com rodas de conversa, discotecagem e apresentações culturais, para celebrar o dia da Consciência Negra (Foto: Espaço Gentileza/Divulgação)

Daí, vem a Festa Preta, no sábado seguinte, 20 de novembro, Dia da Consciência Negra. Tetê Oliveira e Igor Fernandes deram o tempero da consciência política e da luta de classes nas conversas que provocaram. Santina, artista, preta, pobre, mulher trans, seguiu conduzindo uma musicalidade visceral e revolucionária. Um soco no estômago da hipocrisia pequeno burguesa que sustenta o sistema. Levando e levantando o nome da Fumacê, que está com uma produtora audiovisual, lançando programas e produções culturais, lives, entrevistas, música e toda sorte de parcerias na geração de conteúdo transformador. E mais expositores, mais gente trabalhando e vivendo da economia criativa, porque a gente tem isso: insiste em viver, insiste em trabalhar e em fazer as coisas acontecerem.

 

Para fechar o tema deste novembro inacreditável, tem lançamento de Marighella nos cinemas. Depois de mais de dois anos de censura, de fake news, de tentativas desesperadas de desqualificar Wagner Moura, o diretor desta obra cinematográfica, de questionarem a cor do Seu Jorge no papel principal, mais racismo, mais violência e blá blá blá… O que resta falar? Apenas, assista! Assista mais de uma vez, se o presidente permitir. Aqui na Baurulândia, a bilheteria foi fraca. Mas, no Brasil, em apenas quatro dias, bateu todos os recordes. É preciso entender, de uma vez por todas, que a estrutura que nos escraviza não nos oferecerá nenhum instrumento para que a gente se dê conta dos seus mecanismos alienantes, nem para que deixemos de ser explorados.

 

Quem está no poder é o inimigo dos que estão na base e suportam todo o peso da opressão. Qual inimigo dá, por livre e espontânea vontade, munição para quem vai atirar nele? O poder só faz uma coisa com quem o questiona: ele cala. E, se for preciso, mata!

A arte segue cumprindo o seu papel maior, que é provocar a reflexão sem amarras. A Arte é o nosso antivírus contra o sistema corrompido, que cresce em situações adversas, se fortalece, e volta maior ainda do que aqueles que tentaram matá-la, pensando que ela era frágil.

 

Vai, Bauru! A gente acredita que o maior legado que teremos deste momento histórico mundial será a capacidade de refletir, pensar, questionar, criar e, no final, vencer todo o obscurantismo que flerta com a humanidade nos últimos anos. Começamos com apenas alguns e, a cada dia, somos mais. Parabéns a todos os que acreditaram que unir forças seria melhor do que caminhar sozinho, brilhar sozinho ou brilhar apenas com a sua turminha. “Todos juntos, somos fortes”, como já disse Chico Buarque em seu musical Os Saltimbancos, que, aliás, em todas as suas entrelinhas, tem tudo a ver com nosso tema. Se não conhece, também recomendo!

 

*Cátia Machado é cantora e membro do Conselho Municipal de Cultura.

As colunas são um espaço de opinião. Posições e argumentos expressos neste espaço não necessariamente refletem o ponto de vista do Jornal Dois.
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