A vitória de Pirro – ou nadar para morrer na praia

Não vai ter quem ganhar ou perder, vai todo mundo perder

Publicado em 4 de agosto de 2021

Pirro, o rei grego que invadiu a Itália e venceu, mas perdeu (Reprodução/Autor desconhecido)
Por Arthur Castro, colunista do J2

O rei Pirro havia acabado de vencer uma importante batalha contra os romanos. Ao ver seus próprios soldados comemorando, dizem, ele falou que não havia o que comemorar. Venceram a batalha, mas o custo foi muito alto: metade das forças haviam morrido, vários aliados estavam recuando, faltavam recrutas. Pirro podia ter vencido a batalha, mas perdeu a guerra.

Por causa dessa história, “Vitória de Pirro” passou a ser uma expressão, uma forma de dizer “ganhou perdendo”. Basicamente, quando você consegue o que queria, mas mesmo assim perde. E podemos dizer com tranquilidade que isso resume a política brasileira dos últimos anos.

A guerra dos tronos

Com o final da ditadura militar, o sistema político passou por profundas mudanças. O principal partido de oposição – o MDB – se tornava o lar de uma série de lideranças políticas envolvidas com esquemas de corrupção e coronelismo, o que causou um racha interno. Nasceu, assim, o Partido da Social-Democracia Brasileira, PSDB.

Inspirado na centro-esquerda europeia, esse partido caminhou para o centro e depois para a centro-direita durante os governos de Fernando Henrique Cardoso (FHC). Não é o objetivo desse texto discutir as políticas econômicas adotada pelos tucanos, mas é importante indicar que, após a eleição de Lula, se tornaram a principal força de oposição direitista.

Conforme os anos passaram, o PSDB se dividiu em três lideranças: Aécio Neves, de Minas Gerais, e José Serra e Geraldo Alckmin, de São Paulo. Após os dois paulistas terem sido candidatos e terem perdido, o mineiro teve a chance de ser o escolhido para a eleição de 2014.

Aécio Neves quase derrotou a candidata petista, Dilma Rousseff, no segundo turno. Enquanto a direção tucana reconhecia a derrota, setores radicalizados de classe média começaram a questionar o resultado das urnas – entre esses grupos estavam uma série de organizações de direita sobre as quais falarei mais à frente. O que importa agora é que isso resultou em uma série de movimentações contra o governo do PT.

Aécio decidiu fazer sua aposta e pedir anulação da chapa vencedora (Dilma-Temer) junto ao Tribunal Superior Eleitoral, usando as acusações da Lava Jato como desculpa. Seu plano: convocar novas eleições, aproveitar o desgaste do petismo e vencer dessa vez. Mas as outras lideranças do PSDB tinham outros planos.

O “Fora Dilma”

Quando as urnas anunciaram a vitória da candidata petista, uma manifestação com 10 mil pessoas foi organizada na Avenida Paulista. A liderança desse ato era encabeçada por uma diversidade de direitistas que incluíam Kim Kataguiri, do Movimento Brasil Livre, e Eduardo Bolsonaro.

Percebendo o potencial de radicalização, o MBL decidiu surfar em um ato convocado anonimamente via Whatsapp para o mês de Março. Sim: uma corrente de Whatsapp, feita sabe se lá por quem, convocava uma manifestação contra Dilma e Alckmin, e o MBL assumiu a autoria (mentira assumida pelos próprios anos depois). Na hora de fazerem o ato, também tiraram o nome de Alckmin do texto, tornando algo totalmente contra o PT.

Essa não foi a primeira ação oportunista do grupo. O Movimento Brasil Livre (MBL) foi criado com esse nome para imitar o nome do Movimento Passe Livre (MPL), de esquerda e que ficara popular em 2013. Mas ao contrário do original, o MBL era de direita.
O MBL decidiu erguer como bandeira do ato de Março de 2015 a defesa do Impeachment de Dilma. Nem todo mundo concordava. Dentro do PSDB, quem apoiou foi José Serra. Amigo do vice Michel Temer, Serra esperava conseguir um cargo de ministro, que usaria para construir a própria imagem e preparar o caminho para a eleição de 2018.

Aécio, como já dito, apostava na cassação da chapa via TSE com eleições imediatas. Geraldo Alckmin, governador de São Paulo na época, defendia deixar Dilma no poder, se desgastando e se queimando junto à população devido à lava jato e à crise econômica, enquanto ele preparava a própria candidatura. Com a mesma posição que Alckmin, o movimento liberal Vem Pra Rua, com fortes conexões com a juventude tucana, não queria impeachment. Para eles, o ato de Março de 2015 deveria ser, apenas, critico do PT, mas sem derrubar o governo.

No fim da fila vinha a extrema direita representada pelo grupo Revoltados Online, pelos defensores de um novo golpe militar e pela família Bolsonaro.

Quem ganhou essa primeira batalha, já sabemos. José Serra e MBL conseguiram colocar o Impeachment como bandeira nacional, derrubando Dilma e levando à presidência Michel Temer. E sem dúvidas o principal derrotado foi Aécio Neves.

Após quase vencer as eleições de 2014 e se tornar o rosto da oposição, Aécio se tornou alvo da própria Lava Jato que ele defendeu. Sua imagem derreteu para seu principal eleitorado – a classe média – e ele foi incapaz de se recuperar. A partir daí, toda a direita que apostou no golpe como solução começaria a ser derrubada pelo próprio golpe.

Acelera, São Paulo!

Com Michel Temer presidente e Aécio fora de jogo, a situação ficava a favor de Serra, que junto com FHC, preparava o próprio candidato para prefeitura de SP em 2016: Andrea Matarazzo.

Mas uma nova dobradinha alteraria seus planos. Geraldo Alckmin e o MBL, em uma parceria informal, conseguem garantir a candidatura tucana de João Doria, forçando Matarazzo a migrar para o PSD. Usando um discurso bem à direita, Doria, com apoio do governo estadual, conseguiu se eleger prefeito da cidade de São Paulo.

Para piorar, o governo Temer é engolido por uma série de denúncias associadas à Lava Jato, e José Serra não consegue se destacar como ministro. Com seu candidato paulistano derrotado e com o fiasco ministerial, ele é mais um tucano derrubado do tabuleiro.

Geraldo Alckmin se tornou a principal alternativa de direita para 2018, mas as coisas não iriam se acalmar.

Quem com ferro fere

É o ano de 2017, e a classe média de direita seguiu se radicalizando. Dois nomes começaram a se destacar: João Doria e Jair Bolsonaro. O MBL até tenta articular o próprio candidato, Flávio Rocha, dono da Riachuelo, mas sem sucesso.

Empolgado pelas pesquisas, Doria decidiu trair seu padrinho, Geraldo Alckmin, e sair ele próprio candidato à presidência, mas o então governador estava mais preparado e se garantiu para 2018. Sem escolha, João Doria decidiu se candidatar ao governo estadual. Apesar dessa vitória interna, o ex-governador Alckmin seria massacrado nas urnas, assistindo o eleitorado tradicional tucano mudar as apostas para Jair Bolsonaro.

Agora saltamos no tempo para 2021.

O PSDB foi praticamente destruído. Após se eleger se associando ao bolsonarismo, João Doria foi desprezado pela direita brasileira e, pela primeira vez em mais de 20 anos, os tucanos podem perder a eleição para governo estadual em 2022.

O Movimento Brasil Livre conseguiu superar seus rivais, como o Vem Pra Rua, mas entrou em decadência após brigar com Bolsonaro, acusado de traidor pela extrema direita. Até mesmo a Operação Lava Jato seria golpeada por esse processo de radicalização após rompimento de Sérgio Moro com o bolsonarismo.

No final, mesmo Bolsonaro, triunfante de toda essa disputa interna, viu sua base de influência derreter após o desastre da gestão de saúde com a pandemia. As últimas pesquisas, até a publicação desse texto, indicavam sua derrota para vários candidatos em 2022, e em especial, ironicamente, para o ex-presidente Lula.

Não vai ter quem ganhar ou quem perder, vai todo mundo perder

Até agora vimos uma série de vitórias de Pirro, com suas consequentes derrotas. De Bolsonaro à Lava Jato, passando por PSDB e MBL, vimos crise, decadência e colapso. Isso não significa, contudo, que a direita perdeu.

Na economia, o avanço da Lei de Terceirização, da Reforma Trabalhista, da Reforma da Previdência e da privatização da Eletrobrás são alguns exemplos que mostram que o programa neoliberal – iniciado por Joaquim Levy e continuado por Henrique Meirelles e Paulo Guedes – continuou a todo vapor. Na prática, significou o triunfo dos grandes bancos e das multinacionais, dos bilionários brasileiros e estrangeiros, e o enfraquecimento dos direitos da classe trabalhadora.

Longe dos escritórios da burguesia global, agrupamentos conservadores conquistaram mais espaços no cotidiano. As milícias cariocas já comandam praticamente metade do Rio de Janeiro, e em um dos territórios, aliada ao tráfico e à algumas igrejas, construiu um mini Estado religioso – o Complexo de Israel. Nessa mesma linha, fundamentalistas católicos e evangélicos assumiram posições nas áreas da educação, da cultura e da mídia, promovendo discursos intolerantes e extremistas.

Nas áreas rurais, os grandes fazendeiros iniciaram uma onda nunca antes vista de queimadas, desmatamento e uso de agrotóxicos, colocando a saúde humana e o ecossistema em risco. Com suas próprias milícias, os donos de terras atacaram povos indígenas, ambientalistas e camponeses, produzindo cenas brutais de violência.

No momento em que esse texto vai ao ar, o Brasil está da seguinte maneira. Lula se apresenta como o candidato do PT, declarando em várias entrevistas seu interesse em conversar com setores da direita e da elite. Ciro Gomes, pelo PDT, tenta se vender como caminho de “centro”, criticando direita e esquerda, enquanto também negocia com a direita. A Globo está em busca de uma centro direita confiável que aplique o livre mercado, a tal da “terceira via”. Vários partidos de esquerda, mesmo aqueles que se dizem radicais, falam que é preciso alianças “para além da esquerda” (vocês sabem o que isso significa).

Quando Lula, Ciro ou algum outro político estiver ganhando as eleições de 2022, e os movimentos sociais notarem que toda a terra arrasada que sobrou não pode ser facilmente arrumada com um governo eleito dentro das regras do jogo, então talvez a esquerda brasileira perceba que ela é a verdadeira representante de Pirro em toda essa história.

*Arthur Castro é professor de História e integrante da Organização Anarquista Socialismo Libertário (OASL)
As colunas são um espaço de opinião. Posições e argumentos expressos neste espaço não necessariamente refletem o ponto de vista do Jornal Dois.
Acredita no nosso trabalho?         
Precisamos do seu apoio para seguir firme.    
Contribua  a partir de 10 reais por mês.