A localização dos pontos culturais de Bauru favorece a quem?

Centralização das atividades afasta população que mora distante do centro e a produção artística nesses lugares não é incentivada

Por Flávia Gândara

“Nossa cidade é muito rica, respira muita arte, sabe?” — foram essas as palavras que Luiz Fonseca, Secretário Municipal de Cultura, usou para responder minha pergunta quando o questionei sobre a fertilidade do cenário cultural em Bauru.

As agendas culturais da cidade seguem uma rotina. O Teatro Municipal recebe peças, toda semana tem estreia de filmes nos cinemas e shows variados fazem parte da programação nas folhinhas de calendário. A população que tem acesso garantido ao centro da cidade ou a casas de evento próximas à rodovia consegue ter contato com a arte.

Bauru ocupa uma área de 673,488 km² bem no meio do Estado de São Paulo, e a maior parte dos locais que estão inseridos na programação cultural se localizam, também, ao centro do município mais populoso do centro-oeste-paulista.

Mapa de Bauru, onde estão pontuados os locais que mais recebem atividades culturais. Da esquerda para a direita: Estação Ferroviária, Espaço Protótipo, Casa Ponce Paz, Teatro Municipal, SESC, Parque Vitória Régia e Sagae Eventos. (Arte: Flávia Gândara/JORNAL DOIS)

São aproximadamente 371,7 mil bauruenses que tem o direito de produzir e de ter acesso à cultura. Renato RapNobre faz parte deste número. Um dos idealizadores do Sarau do Viaduto — evento que ocupa o espaço público e incentiva a arte literária e poética -, ele acredita que essa concentração prejudica o acesso das pessoas no contato com a arte: “Como que uma família que recebe dois salários mínimos, quando não um, vai pagar 40 reais por cabeça pra ir ao teatro e ainda pagar aluguel, carro, alimentação, saúde, transporte, vestimenta… Como? É a cultura segregada e apropriada”.

A dificuldade de chegar até os pontos centrais da cidade restringe as populações marginais — em sua maioria, negras e pobres — a seus próprios meios. E as artes produzidas nesses espaços não recebem estímulos, nem ambientes físicos iguais, comparadas com as manifestações culturais de locais garantidos: “Repare como a vida noturna na cidade está colocada… do centro até a zona sul. Do restante é só ponto de ônibus depredado, igrejas, bares e biqueiras. Essa é a cidade”, reflete Renato.

Para Mariana Lacava, poeta marginal, escritora e performer, a centralização da arte tem que ser revertida através da ocupação dos espaços: “o mais importante é trazer a cultura periférica pra dentro de espaços elitizados”, comenta.

“O que é cultura? O que é arte? A arte tá realmente só dentro do museu, do teatro, das grandes telas de cinema? Provocar essa disputa de imaginário, provocar esse intercâmbio de cultura, esse choque de cultura é o mais importante” , diz a poeta.

E foi isso que Mariana fez no dia 17 de março de 2017. Na ideia de levar ao palco essa proposta, participou de uma intervenção organizada pelo movimento Março das Mulheres na abertura da 28ª Exposição Mulher e Arte (Exmarte), no Teatro Municipal de Bauru.

Aos gritos cheios de intenções, declamando sua poesia chamada “Mulheres em situação de rua”, levou a arte marginal até a elite bauruense, com o recorte feminista, porque a poeta acredita “que além da dificuldade da gente dialogar culturas dentro de espaços elitizados, é ainda mais difícil a gente dialogar culturas dentro da ótica feminina nesses mesmos espaços”.

Intervenção de Mariana Lacava — Poexistindo na Exmarte (Vídeo: Francimeire Leme/Reprodução)

 

Na gestão atual da Secretaria da Cultura, Luiz Fonseca afirma que houve um avanço na democratização do acesso à cultura em Bauru. Ano passado, segundo o secretário, aconteceu um “insight muito grande, inclusive foi um sucesso fantástico”.

Foi quando o poder público reuniu cerca de 30 meninos e meninas, entre oito e 15 anos, para tocar violino e violoncelo nos bairros descentralizados da cidade. O evento levou Fonseca à conclusão de que “o caminho é esse mesmo, só precisamos agora aumentar um pouco esse leque, né?”.

Com base no cenário fragmentado que existe hoje em Bauru, seria preciso aumentar consideravelmente esse “leque” para que o acesso à cultura seja, de fato, possível em toda a cidade e para que haja incentivo aos diversos tipos de manifestação artística.

Na realidade digital, as mídias conseguem fazer o papel de palco, luz e cortina para alavancar expressões de arte

Segundo uma pesquisa de mapeamento que está em construção pelo NeoCriativa — Núcleo de Estudos e Observação em Economia Criativa, os dados ainda são parciais para afirmar que culturas subalternas da cidade estão ocupando espaços físicos.

Juarez Xavier é coordenador do projeto e afirma que “num nível avançado, se encontram os segmentos da juventude subalterna, negra e pobre, na apropriação de bens tecnológicos, como as redes sociais, para a luta pelos seus direitos”.

 

“A cidade pertence a quem? É preciso ocupar os espaços vagos. Ocupar e moldar o concreto da cidade com cultura” (Renato Rapnobre); SlamSubverso, competição de poesia (Foto: Reprodução/SlamSubverso)

 

O professor e pesquisador também observa que a forma pela qual acontece essa apropriação pode ser diversa: seja analógica, seja digital, é plural em suas plataformas e linguagens. “É o que mostra o mapeamento, efetiva, afetiva e em processo de ampliação constante”, completa.

Nos planos da Secretaria de Cultura está a mudança da realidade bauruense para tornar possível o amplo acesso às artes para toda população. Luiz Fonseca afirma pretender “levar às periferias da nossa cidade a arte de alguma forma. Pode ser arte em teatro, música, mas o mais importante é levar cursos, para atingir crianças e adolescentes”.

O secretário vê na iniciativa a oportunidade de jovens que moram em bairros periféricos considerarem a arte como profissão futura.

“E até esse lance de a gente ter que classificar as coisas, tipo cultura periférica, reflete a nossa sociedade estratificada, separada em classes. Tudo é um reflexo de como as coisas estão postas”, ressalta Renato RapNobre.

Esta é uma reportagem opinativa. A apuração e checagem das informações expressas seguem o rigor jornalístico orientado com base em uma hipótese elaborada pelo repórter.