A casa grande entre senzalas urbanas

Espaços públicos de Bauru são construídos sob a perspectiva de um apartheid social, que seleciona quem é que pode acessá-los

Reportagem publicada em 7 de janeiro de 2018

A quem se destinam as fronteiras da cidade ‘sem-limites’? (Foto: Ana Carolina/ JORNAL DOIS)
Por Ana Carolina Moraes, Giovana Amorim, Laura Botosso e Yuri Ferreira

Nos dias de chuva o centro de Bauru parece se desfazer. Enquanto as calçadas enchem com a água das enxurradas, as ruas e praças ficam vazias, com poucas possibilidades de abrigo para quem quer passar. O único coreto da praça Rui Barbosa é uma delas, junto com as marquises do Calçadão da Batista, lugar reservado para lojas grandes ou pequenas, onde os carros não entram.

Ao contrário de dias como esses, o constante movimento nas quatro ruas que marcam o contorno da praça central da cidade é uma amostra da funcionalidade do espaço. Raras árvores, bancos expostos ao sol e chuva e a falta de chamadores culturais reduziram a vastidão do lugar à uma passagem.

Os pedestres tiram pouco ou nenhum tempo para aproveitar o lugar; a maioria apenas cruza o pavimento para chegar às lojas, ao banco, aos estacionamentos. Quem utiliza mesmo o espaço são os moradores e moradoras em situação de rua que vão até o centro da cidade para trabalhar cuidando de carros, embaixo do sol escaldante, ou para encontrar seus conhecidos, espalhados por alguns bancos nos cantos. Grupos de idosos aposentados — já conhecidos por morarem na região — se sentam sob as poucas sombras para jogar baralho ou dominó. Alguém às vezes recita a bíblia.

Essa disposição vem de pouco tempo. A Rui Barbosa e o centro da cidade mudaram de forma constante desde sua criação e ao longo do desenvolvimento. Estritamente ligado à chegada e desenvolvimento da ferrovia, esse espaço recebeu grande variedade de experiências daqueles que passavam ou se instalavam pela cidade. Ali cresceram as trocas comerciais e sociais, que concentraram o centro da população em torno da economia local. Não por acaso, a partir desse ponto, se iniciaram os projetos de revitalização da praça e construção do calçadão.

Não é praça

A região, conhecida como Saara por conta do clima quente e seco da cidade, deu possibilidade para a criação da Rui Barbosa, chamada inicialmente de Praça Municipal. Ligada à Catedral do Espírito Santo, igreja matriz, a praça teve seu caráter religioso modificado com início no primeiro projeto, de 1914, inspirado na Praça da República de São Paulo, que dava ao lugar um caráter de contemplação e integração. Cheia de arbustos e árvores, com um vasto lago e caminhos sinuosos, buscava aspectos contemporâneos da capital para implementar no interior em desenvolvimento a modernidade, muito comumente almejada pela elite que detinha o comércio do café, que entraria em crise no fim da década dando lugar à expansão da ferrovia pelo noroeste paulista.

Os interesses da elite cafeeira são marcadores importantes das apropriações do espaço na conjuntura da época. O artigo “Perda de patrimônio paisagístico: praça Rui Barbosa, Bauru — SP” publicado pela arquiteta, paisagista, professora e doutora do Departamento de Arquitetura, Artes e Comunicação da Universidade Júlio de Mesquita Filho (UNESP), Emília Falcão, mostra que nos anos de 1930 a presença de pessoas negras não era permitida na praça, e era fora de seus limites que circulava essa população. Enquanto isso, era ali que famílias brancas passavam o tempo.

A praça de convivência se tornou local de passagem. (Foto: Ana Carolina Moraes/ JORNAL DOIS)

A primeira reforma aconteceu nos anos 1950, quando a comunicação e a cultura efervesciam. A grande movimentação, especialmente da população trabalhadora, pobre, negra, leva à transição de um lugar de interações para um lugar de passagem, numa tentativa de dispersar essas presenças. A revitalização de 1991 evidencia essa mudança de forma drástica: a maior parte das árvores é cortada, o lago dá lugar à uma fonte muito menor, os caminhos viram um pavilhão de concreto, quente demais ao sol, molhado demais na chuva. Adilson Santos, 45, cuidador de carros na região da Rui Barbosa, pedreiro e repórter do jornal independente Fatos da Rua, feito por pessoas em situação de rua, conta que sua relação com o lugar é antiga.

“De primeiro tinha show, sexta, sábado, domingo. Tinha sorteio de leitoa. Parecia um parque, tinha peixe, macaquinho, ganso. Hoje não tem mais nada, só alguns bancos quebrados”, relembra.

Acostumado a passar jornadas de trabalho inteiras na região, ele lamenta “aquilo não é praça”.

O deslocamento do centro é um sintoma dessa separação. É que agora a elite, os comerciantes e empresários, se deslocam em direção aos shoppings, às áreas residenciais mais caras, aos subúrbios e condomínios. O centro de detenção dos meios produtivos e recursos não significa o centro da cidade em sua geografia e é movido por interesses imobiliários, onde as classes mais altas concentram suas relações. Com esse deslocamento vai junto o interesse econômico, a aplicação da verba pública e os recursos de produção. A transformação e abandono da Rui Barbosa diz respeito ao interesse de valorização de regiões específicas, as privilegiadas, em detrimento das onde estão aqueles chamados de ralé.

Segregação espacial

Depois da parada no último ponto da linha de ônibus, parece que não tem mais cidade. O bairro Edson Francisco Silva, também chamado de Bauru XVI, é o último da zona oeste, a 7 quilômetros do centro. É um bairro residencial, como foi planejado, mas não tem espaços de convivência comum como praça ou quadra de esportes: as crianças jogam bola na quadra com terra batida.

No bairro da frente, o Nova Esperança, a realidade se repete. Quando tem alguma atividade cultural para a comunidade, o pessoal se reúne em um terreno atrás do posto de saúde. Não tem banco, sombra ou cimento. É um terreno mesmo, cercado por árvores e um alambrado. Precisa subir um pequeno barranco para entrar. Tem alguns aparelhos de fazer ginástica, e o banquinho de um senhor. E só.

Em comum, os dois espaços, mesmo em áreas acêntricas, têm infraestrutura básica e são providos de linhas de ônibus que ligam os últimos bairros da zona oeste aos condomínios da zona sul. Mas, aos finais de semana e feriado não tem ônibus direto. Como os bairros não oferecem lazer, o jeito é, às vezes, caminhar cerca de uma hora e meia até a Avenida Rodrigues Alves, principal corredor de ônibus da cidade, para se deslocar até o Parque Vitória Régia ou o shopping.

O último bairro da Zona Leste de Bauru é o Pousada da Esperança II. Do centro, são 7,5 quilômetros de distância. Diferente dos dois outros exemplos apresentados, o Pousada não tem infraestrutura — tubulações de água, ruas asfaltadas, saneamento básico são itens que estão sendo construídos por lá agora, em 2017. Apenas três linhas ligam o Pousada ao restante da cidade, e os coletivos passam a cada uma hora — no bairro e nos pontos que levam quem está na cidade para o Pousada.

A segregação espacial no território bauruense foi pauta do Plano Diretor da cidade entre 2005 e 2006. O professor de arquitetura José Xaides de Sampaio Alves, que participou da elaboração do Plano, conta que, na época, já havia uma preocupação com a fragmentação do espaço urbano orientada pelo capital.

“Um dos principais debate era o combate à segregação social urbana, que criava mesmo um apartheid social entre as zonas mais ricas, a zona sul da cidade, onde o mercado tinha elegido como as áreas para os grandes investimentos, em detrimento de uma população que ficava cada vez mais abandonada na periferia, sem os aparatos públicos, de integração com a cidade, de desenvolvimento, de geração de renda, e afastando da distribuição de benefícios da cidade”, comenta.

O diagnóstico urbano do Plano traz a mesma perspectiva de Xaides, a de que a construção dos espaços urbanos de Bauru resulta de “uma forte segregação espacial, onde a população mais abastada ocupa as áreas mais bem servidas de melhoramentos públicos e a população carente mora cada vez mais distante, nos loteamentos periféricos, precariamente servidos de infra-estrutura”.

Migalha

“A cidade é um reflexo físico da política de interesse, da relação de classes do interior da cidade”, afirmou José Xaides, docente de Arquitetura, sobre o planejamento seletivo dos espaços urbanos na cidade. “Desde os anos 1980, a região de Zona Sul foi eleita pela classe dominante como a região que deveria ser mais favorecida. Não é a toa que você olha para essa região e encontra todos os equipamentos de lazer, todos os clubes de serviço, as melhores praças e as melhores áreas de lazer, os edifícios públicos, as melhores avenidas, as melhores condições de parques, jardins, e assim por diante”, explica.

A construção desigual da cidade também exprime a desigualdade de distribuição de renda. Segundo o Plano Diretor, de 2008, as pessoas pobres, que têm rendimento médio inferior a dois salários mínimos vivem nas regiões acêntricas de Bauru, conhecidas pelas ausências — de segurança, educação e cultura. Quem tem renda maior que quinze salários mínimos ocupa a zona centro-sul da cidade, com melhor infraestrutura e qualidade de vida.

Outro indicador apresentado no Plano Diretor é a educação. O documento mostra que a desproporção educacional dos bauruenses está atrelada ao território. É na região centro-sul, a mais rica, que estão as pessoas com maior escolaridade; a população analfabeta, por sua vez, reside nas zonas acêntricas, onde há poucas ou não há escolas.

“As periferias ficaram sempre com a migalha. A região norte, a região leste vêm crescendo de uma forma onde os recursos chegam minoritariamente, e as áreas da região sul são sempre as mais privilegiadas, pois o poder público as favorece, por conta dos compromissos com as classes dominantes”, comenta Xaides.

(Foto: Ana Carolina Moraes/ JORNAL DOIS)

Senzalas urbanas

Dos 400 bairros de Bauru, mencionados no Plano Diretor, 22 eram favelas com cerca de 3 mil barracos. A maior parte dessas construções ocupavam áreas verdes e de preservação permanente, distantes do centro. O professor José Xaides conta que, na época da discussão do plano, foi identificado que a cidade tinha muitos espaços vazios em seu interior e que não tinha necessidade de expandir para a periferia.

No entanto, esta perspectiva mudou quando a necessidade de expansão para as zonas mais afastadas parte dos interesses do capital financeiro, de construtoras. Xaides explica que, nesse processo, passou a ser aprovado condomínios na cabeceira de córregos, condomínios em áreas que eram originalmente de Preservação Permanente ou de APAs. “Isso gerou um caso extremo aqui, de um condomínio que depois foi detectado que ele estava em área de APA no município Bauru e tinha sido aprovada como Agudos, e é um condomínio que está para ser desmanchado. E os bens da construtora, daqueles políticos que aprovaram, estão, inclusive, bloqueados pela Justiça para garantir a devolução do dinheiro de quem foi enganado. Alphaville também foi aprovado assim”.

Próximos a essas áreas periféricas apropriadas pelo capital financeiro para a construção de condomínios, por exemplo, surgem as favelas. Enquanto os condomínios têm organização para a construção das moradias, iluminação, asfalto, água — às vezes represas — e muros que “garantem” a segurança, as favelas são desprovidas de tudo e violentadas pelo Estado. Estes espaços acêntricos surgem ao lado dos condomínios para manter a hierarquia social e garantir a prestação de serviços subalternos dos mais pobres para os mais ricos.

É o caso do bairro Jardim Niceia. O bairro fica ao lado de uma universidade pública e entre três condomínios residenciais. Às seis da tarde, o fluxo nesta região é intenso: a entrada dos proprietários nos condomínios, a saída dos trabalhadores dos condomínios rumo às suas casas no Jardim Nicéia, a passagem de estudantes para entrar ou sair da universidade. Cada um destes atores, presos em suas realidades delimitadas por classes, sabem em qual espaço podem estar ou não. Xaides explica que o fenômeno de ter favelas próximas de regiões ricas é “social, cultural do Brasil, é a própria pobreza que justifica isso, como a casa grande e a senzala, vamos dizer assim, urbanas.”

Esta é uma reportagem opinativa produzida por colaboradores, que está divida em duas partes. Para ler a segunda parte da reportagem, acesse: https://goo.gl/CD2oEi